Coluna

Marcelo Coelho

O extremismo político começa no xampu e na batata frita

02 de abril de 2025

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A ‘polarização’ dos últimos tempos foi de certo modo prefigurada pelos novos padrões de gosto e de consumo que emergiram há cerca de uma década

Faz um bom tempo, a moda era chamar tudo de “light”. Os cigarros (porque naquela época ainda se fumava) eram “light”, assim como o iogurte e a geleia. Até a feijoada virou “light”, acho que sem prova nenhuma a sustentar a afirmação.

A decoração das casas era “clean”, e até as gravatas se fizeram mais magrinhas. Estava em curso uma reação contra os excessos da década de 1970, com suas roupas estampadíssimas, sapatos plataforma, costeletas de lobisomem e cabelões roçando o teto.

Com o tempo, também o mundo “clean” foi sendo deixado para trás. As coisas começaram a mudar quando, dos rótulos “light”, passou-se ao “zero”. A Coca “zero” aparece numa latinha preta, com letras peremptórias; na febre das abolições, instituiu-se o queijo zero lactose, o leite zero gordura, os produtos zero açúcar. Qualquer dia teremos a feijoada zero também – se é que a “feijoada vegetariana” já não corresponde a esse desejo de radicalização.

Radicalização: esse é o termo. Minha ideia é que a onda de extremismo político e a “polarização” dos últimos tempos foi de certo modo prefigurada pelos novos padrões de gosto e de consumo que emergiram há cerca de uma década.

Quando eu era criança, todo chocolate era “ao leite”, com exceção de uma barra grossa, pesada e pulverulenta, da extinta marca Sönksen, que se vendia como chocolate meio-amargo, “para cavalheiros”. Hoje em dia, ninguém se contenta com o simples e vago meio-amargo. A barra com cacau 70% já seria, na linguagem antiga, coisa “para maricões”; procura-se o cacau 85%, o 90%, ou, no campo do puro totalitarismo, a barra 100%.

Marcelo Coelhoé jornalista, com mestrado em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo). Escreveu três livros de ficção (“Noturno”, “Jantando com Melvin” e “Patópolis”), dois de literatura infantil (“A professora de desenho e outras histórias” e “Minhas férias”) e um juvenil (“Cine Bijou”). É também autor de “Crítica cultural: teoria e prática” e “Folha explica Montaigne”, além de três coletâneas com artigos originalmente publicados no jornal Folha de S.Paulo (“Gosto se discute”, “Trivial variado” e “Tempo medido”).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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