Coluna

Januária Cristina Alves

Como a desinformação acelera o Relógio do Juízo Final

01 de fevereiro de 2024

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Ponteiros já se moveram 25 vezes ao longo da história. O que pode ser um alerta, mas também um fio de esperança

Cresci com minha avó materna anunciando que o mundo ia acabar “do jeito que a coisa vai”. Minha avó nascera em 1901, pernambucana das boas, era mestre em enfrentar secas e intempéries diversas, lugar comum para quem cresceu no início do século 20. Ela costumava se espantar com o que o ser humano era capaz de fazer com seus semelhantes. Para ela, traição, deslealdade, fofoca, desejar (e fazer) mal ao outro eram mesmo o fim do mundo. O que dizer das moças usando saias curtas, tomando pílula anticoncepcional, casando mais de uma vez e outras modernices: essas também eram o fim do mundo, mas nada que merecesse que o “dedo de Deus” interviesse e colocasse um fim na sua criação que, afinal de contas, não deu certo. Uma manchete que li aqui no Nexo me fez lembrar muito de minha vó Santa (era esse seu apelido, pois rezava três rosários por dia para abençoar cada um dos seus 15 filhos): segundo o Relógio do Juízo Final, faltam 90 segundos para o fim dos tempos. Ou seja, parece que a profecia dela está para se concretizar.

A desinformação está no cerne das guerras, das mudanças climáticas e dos usos da Inteligência Artificial. Se a informação é poder, o seu oposto passou a ser a mercadoria mais disputada no mercado

O Doomsday Clock, conhecido como Relógio do Fim do Mundo ou Relógio do Apocalipse, foi criado pelo Boletim dos Cientistas Atômicos em 1947, e desde então marca, a cada ano, a hora simbólica para o Juízo Final da humanidade, de acordo com os fatos positivos ou negativos que nos acontecem (quem quiser saber mais sobre a história desse relógio pode acessar o trailer de um documentário sobre ele que foi lançado no final de 2023). Neste ano, o relógio marcou os mesmos 90 segundos de 2023, destacando que os principais motivos pelos quais o Armagedom está tão próximo são: a ameaça de uma nova corrida armamentista nuclear, a guerra na Ucrânia e as preocupações com as mudanças climáticas. Além destas, o uso da Inteligência Artificial também aparece na lista. Para compreender a questão de forma mais ampla, acho importante destacar um fenômeno por trás de todas essas mazelas que nos assolam: a desinformação. Na minha coluna anterior, chamei atenção para o fato de ela aparecer como o maior problema global a ser enfrentado pela humanidade nos próximos anos.

A desinformação está no cerne das guerras, das mudanças climáticas e, é claro, dos usos da Inteligência Artificial. Se a informação é poder, o seu oposto passou a ser a mercadoria mais disputada no mercado. “É meramente uma questão de tempo até que a desinformação (nos) leve a uma calamidade” foi o título da matéria de capa da prestigiada revista Financial Times da semana passada, que exibia uma foto falsa na qual se vê Trump dando um selinho em Biden. E o subtítulo resume a questão: “falsificações, fraudes e o significado do significado na era da pós-verdade”, em tradução livre. Na versão impressa vemos a foto e o título, que é apenas a palavra “Fake”. Podemos dizer que a desinformação, com certeza, está contribuindo para acelerar o Relógio do Juízo Final, e, como sempre, está nas nossas mãos fazer parar esse ponteiro.

Não é demais reafirmar que se fosse fácil não estaríamos debatendo essa questão em todas as instâncias, mas não é possível assistir ao relógio caminhar de braços cruzados. Nesse sentido, é preciso, sempre, começar pela educação e pelo empoderamento dos cidadãos globais no combate a esse problema. Como exemplo de ação a curto e médio prazo, vale destacar a campanha global pela integridade das informações nas plataformas digitais, promovida pela ONU. Ela é inteligente e pode ser bastante eficaz, porque parte de um conceito de fundamental importância para conscientizar os cidadãos: o de que a informação “é um direito humano fundamental que possibilita a construção do conhecimento sobre a realidade social. É um alicerce da liberdade, do convívio social e do desenvolvimento”. Segundo a organização, a integridade da informação refere-se à sua precisão, consistência e confiabilidade, pois sem ela somos prejudicados nas tomadas de decisões de nossa vida cotidiana. O acesso à informação de qualidade, o reconhecimento do que é desinformação e informação falsa é a base da participação social, pois é a deterioração do ecossistema informacional que tem provocado a desconstrução da democracia. 

Vale a pena consultar o Informe de Política sobre Integridade da Informação nas Plataformas Digitais, preparado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, e publicado pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil. Guterres descreve assim o documento: “o presente Informe descreve os princípios potenciais para um Código de Conduta que auxiliará a orientar os Estados-membros, as plataformas digitais e outros atores interessados nos esforços para tornar o espaço digital mais inclusivo e seguro para todas as pessoas, ao passo que defende vigorosamente o direito à liberdade de opinião e expressão e o direito de acesso à informação”. Uma excelente bússola a nos nortear em busca de ações concretas para lidar com a desinformação em suas diferentes esferas.

As complexas relações entre informação e verdade, burocracia e mitologia, sabedoria e poder, e de como diferentes sociedades e sistemas políticos utilizaram a informação a seu favor serão analisadas pelo historiador israelense Yuval Noah Harari no seu novo livro “Nexus: uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial”. Segundo ele, a obra pretende evidenciar que “ao fazer escolhas informadas, podemos evitar os piores resultados”. 

Não é a primeira vez que o relógio marca o fim da humanidade. Os ponteiros já se moveram 25 vezes ao longo da história. O que pode ser um alerta, mas também um fio de esperança. Assim, sigamos acreditando que, mais uma vez, podemos atrasar o relógio e salvar a nós mesmos do Juízo Final. E combater a desinformação é uma parte importante dessa tarefa.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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