Acadêmico

Como funciona a regulação de preço de eletricidade na Europa

Pedro H. J. Nardelli

24 de outubro de 2018(atualizado 28/12/2023 às 12h11)
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Este artigo, publicado pelo pesquisador Pedro Nardelli e coautores no periódico internacional Energy, analisa o mercado europeu de energia elétrica e o modelo de precificação da eletricidade em tempo real.

Entre os resultados, os pesquisadores destacam que o sistema implementado gera alterações inesperadas na precificação da energia elétrica, o que pode significar custos mais altos para os consumidores.

1Qual a pergunta a pesquisa responde?

O mercado de eletricidade na Europa é liberalizado. O mercado de varejo é composto pelas distribuidoras de eletricidade e o consumidor final, enquanto o de atacado é a forma que os grandes produtores,  distribuidoras e consumidores fazem seus negócios. O mercado de atacado gera, com um dia de antecedência, os preços da eletricidade para cada hora do dia. E o preço pago pelo consumidor final para distribuidora depende dos detalhes do contrato entre as partes.

Tradicionalmente, as distribuidoras agem como uma mola para amortecer as possíveis variações no preço do mercado de atacado. Tal sistema é funcional quando os consumidores são passivos, ou seja, quando consomem eletricidade de tal forma que o comportamento agregado pode ser quantificado estatisticamente pelas distribuidoras, para fazerem suas ofertas. Quando o consumo é realizado, as diferenças entre a oferta e demanda previstas com um dia de antecedência são corrigidas pelo mercado de balanço. O problema é que as distribuidoras estão usando cada vez mais contratos Preço em Tempo Real, acoplando os mercados de atacado e varejo. Nossa pesquisa avalia o impacto dessa mudança.

2Por que isso é relevante?

O discurso econômico dominante é a forma de justificar a eficiência de mercados competitivos onde agentes racionais fazem suas escolhas de maneira independente, gerando um aumento de bem-estar entre todos os envolvidos. Nesse contexto, os preços agem como sinais que devem guiar os usuários finais, seguindo suas preferências, a realizar seu consumo. No nosso caso, o argumento segue a seguinte lógica: nos horários de alta demanda, o preço da eletricidade vai ser mais caro e isso vai guiar os consumidores a mudar seu padrão de consumo para fugir de tal pico. O consumo se tornará então mais balanceado durante o dia. Só que há um problema sistêmico dentro dessa lógica: o Preço em Tempo Real utilizado pelas distribuidoras é o preço da eletricidade no mercado de atacado. Lembre-se que tal preço é formado com um dia de antecedência, utilizando a previsão de como os consumidores finais agem. Considerando que uma parcela grande dos consumidores finais são reativos ao preço, eles irão desviar das previsões utilizadas para gerar o preço no mercado de atacado, aumentando a necessidade de correções. Ou seja, mesmo dentro da lógica econômica, o sistema proposto é internamente falho.

3Resumo da pesquisa

Este artigo propõe um modelo baseado em agentes, que combina os mercados de eletricidade de atacado (spot/wholesale/day ahead) e de balanceamento (balancing). A partir desse modelo, desenvolvemos uma simulação multiagente para estudar a integração da flexibilidade dos consumidores ao sistema. Nosso estudo identifica as condições em que os preços em tempo real podem levar a custos de eletricidade mais altos, o que, por sua vez, contradiz a afirmação usual de que tal esquema de preços reduz custos. Mostramos que esse comportamento indesejável é de fato sistêmico. Devido à estrutura existente do mercado atacadista, a demanda prevista que é usada na formação do preço nunca é realizada, uma vez que os usuários flexíveis mudarão sua demanda de acordo com o  preço estabelecido. Como a demanda nunca é corretamente prevista, o volume negociado através dos mercados de balanceamento aumenta, levando a custos gerais mais altos. Nesse caso, o sistema pode sustentar e até se beneficiar de um pequeno número de usuários flexíveis, mas essa solução nunca pode ser aprimorada sem aumentar os custos totais. Para evitar esse problema, implementamos os chamados “grupos exclusivos”. Nossos resultados ilustram a importância de repensar as práticas atuais para que a flexibilidade possa ser integrada com sucesso, considerando cenários com e sem fontes renováveis intermitentes.

4Quais foram as conclusões?

Nosso trabalho mostrou que a política de Preço em Tempo Real, que vem sendo massivamente implementada na Europa, é sistemicamente falha: ao invés de estabilizar o sistema, ele cria mais instabilidades. A consequência disso é um aumento do uso do mercado de balanço (mais caro) devido a natureza imprevisível do consumo final, uma vez que ele reage a uma previsão. Por exemplo, o mercado de atacado indica que o preço da eletricidade às 18h é três vezes maior do que às 16h, porque a distribuidora prevê um maior consumo às 18h (o que é refletido no preço). Se os consumidores forem reativos ao preço, eles mudarão seu consumo (sendo isso possível) das 18h às 16h. Nesse caso, haverá uma mudança do pico de consumo, e daí a necessidade de corrigir a oferta e a procura no mercado de balanço em ambos os horários. Tal aumento de preço é dividido por todos os usuários do sistema como custo fixo. Assim sendo, o preço total da eletricidade paga será mais cara para todos, apesar de sempre ser individualmente vantajoso seguir o Preço em Tempo Real (visto como custo variável). Tal solução, aclamada como estabilizadora, gera o efeito oposto, em que todos pagam mais.

5Quem deveria conhecer seus resultados?

Primariamente, eu acredito que essa pesquisa deve ser conhecida por políticos, membros de agências reguladoras e distribuidoras de eletricidade. Nossa abordagem mostra que, mesmo sobre os termos questionáveis da lógica econômica, os esquemas de Preço em Tempo Real podem ser problemáticos. Além disso, eu acho importante que qualquer pessoa que tenha interesse em estudar o funcionamento de mercados tente entender o fenômeno caracterizado no caso particular de mercados liberalizados de eletricidade. Muitas vezes, há uma “cegueira” metodológica baseada nos indivíduos abstratos, esquecendo que eles coexistem em um complexo estrutural dinâmico constituído em camadas física (rede de eletricidade), simbólica (oferta e demanda representada pelo preço) e regulatória (ações individuais em resposta ao preço). Mudanças em uma camada têm impacto nas outras, levando a mudanças “inesperadas” na dinâmica do sistema. Tal resultado pode servir de alerta para políticas públicas baseadas em evidências: resultados positivos em pequenas amostras podem não representar o efeito estrutural na dinâmica do sistema, já que os afetados pelas políticas (re)agem internamente dentro do sistema.

Pedro H. J. Nardelli é bacharel e mestre em engenharia elétrica pela Unicamp. Obteve doutorado em cotutela entre a Universidade de Oulu (Centro de Comunicações sem Fio), na Finlândia, e a Unicamp em 2013. Atualmente, é professor assistente na Universidade de Tecnologia em Lappeenranta e professor adjunto na Universidade de Oulu.

O artigo também é assinado por Florian Kühnlenz, Santtu Karhinen eRauli Svento

Referências

  • Florian Kühnlenz, Pedro H.J. Nardelli, Santtu Karhinen, Rauli Svento, Implementing flexible demand: Real-time price vs. market integration, Energy, Volume 149, 2018. Acesso livre (pre-print): https://arxiv.org/abs/1709.02667

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