Acadêmico

Como se deu a apreensão de livros durante a ditadura militar

Ana Caroline Silva de Castro

28 de novembro de 2018(atualizado 28/12/2023 às 12h13)
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Esta pesquisa, realizada na Universidade de São Paulo, descreve e analisa os dados sobre a repressão a obras consideradas subversivas entre abril de 1964 e março de 1979. As informações integram autos de busca e apreensão da época cumpridos pela polícia política e o Exército para confiscar livros.

Entre as conclusões, a autora destaca que, nos momentos de maior repressão do regime, logo após o golpe e entre o AI-5, em 1968, e 1974, o confisco das publicações atingiu seus maiores picos.

1Qual a pergunta a pesquisa responde?

Quais livros foram apreendidos durante a ditadura militar? E como eles foram usados como provas para condenar suspeitos por subversão? As minhas perguntas começaram com uma experiência pessoal. Meu avô era comunista do PCdoB e desapareceu durante alguns dias durante a ditadura. Quando ele voltou para casa escondeu quase todos os livros no forro do telhado ou no assoalho. Ele sabia que ter livros considerados subversivos era perigoso demais. São muitas as histórias de pessoas que escondiam os livros por medo, não da censura, mas da repressão. Então decidi descrever e analisar os dados sobre repressão a livros considerados subversivos entre abril de 1964 a março de 1979. Os dados estudados são os autos de busca e apreensão cumpridos pela polícia política e exército para confiscar obras durante a ditadura militar e que fizeram parte de processos judiciais que chegaram ao Superior Tribunal Militar. A pesquisa abrange praticamente todos os processos em que houve apreensão de livros no período.

2Por que isso é relevante?

Há diversos estudos sobre como funcionou a censura à cultura durante a ditadura militar. Pouco se sabe, porém, sobre uma outra maneira de coagir o acesso ao conhecimento: a repressão policial contra a livre circulação de livros que não estavam censurados, mas eram considerados subversivos pelo governo militar. A apreensão de livros, que teoricamente podiam ser vendidos e lidos no país, fazia parte de um contexto maior de combate à cultura e ideias divergentes do poder instaurado. Queimar livros, ou tirá-los de circulação, é uma prática de regimes autoritários em todo o mundo. E mesmo após mais de 50 anos do golpe militar ainda estamos escrevendo a história de como a repressão se deu no Brasil. A minha pesquisa foi um levantamento inédito. Pela primeira vez foram catalogados todos os livros apreendidos pela polícia política. A fonte usada é extensa: praticamente a totalidade dos processos do Superior Tribunal Militar de 1964 a 1979, com uma abrangência nacional. Os livros listados, um total de 1.397, são os que foram descritos e compreendidos nos 323 autos de busca e apreensão em que há livros entre os objetos recolhidos.

3Resumo da pesquisa

Descreve e analisa os dados sobre repressão a livros considerados subversivos entre abril de 1964 a março de 1979, no Brasil. Os dados estudados são os autos de busca e apreensão cumpridos pela polícia política e exército para confiscar obras durante a ditadura militar e que fizeram parte de processos judiciais que chegaram ao Superior Tribunal Militar. Cerca de 707 processos foram resgatados e reunidos pelo Projeto Brasil Nunca Mais durante a ditadura e estão disponíveis integralmente na internet desde 2013. A pesquisa abrange todos os resultados da busca de autos de apreensão de livros confiscados contra suspeitos. Ao todo, foram encontrados 323 autos de busca e apreensão em 145 processos jurídicos, representando 20%da totalidade. A pesquisa tem dois momentos. O primeiro é uma análise descritiva dos dados presentes nos autos, em que é possível saber quantos livros foram apreendidos por ano, por organizações, pelo perfil dos atingidos e por quem executou as ordens. Os autos foram analisados como um conjunto desmembrado dos processos. O segundo é a análise do auto de busca e apreensão como parte do processo jurídico.

4Quais foram as conclusões?

Foram 323 autos de busca e apreensão com livros confiscados, em 145 processos, representando 20% da totalidade das ações. Disso foi feita uma lista inédita com as 1.397 obras apreendidas, de 731 diferentes autores. A maioria de literatura de cunho marxista, política e, portanto, considerada subversiva. A análise e descrição das apreensões de livros revelaram que nos momentos de maior repressão da ditadura – logo após o golpe e no período após o AI-5 até 1974 – o confisco dos livros atingiu seus maiores picos. Os grupos políticos clandestinos e setores que estavam em evidência para os militares a cada momento eram os mais atingidos. As execuções dos autos de busca foram feitas pelos principais órgãos repressivos. Outra constatação é que os agentes repressivos buscavam especificamente livros que pudessem incriminar os suspeitos e eram instruídos sobre o tema. Eles não apreendiam qualquer livro. A última observação é sobre como o livro foi usado nos processos judiciais. Na maioria dos processos, os livros eram relatados e descritos assim como os outros documentos, sem destaque. Mas houve casos em que os livros apreendidos foram usados como prova para condenação.

5Quem deveria conhecer seus resultados?

Estudar a censura e repressão aos livros durante a ditadura militar constitui uma pequena parte do contexto coercitivo da época. As violações de direitos humanos básicos, a coerção às instituições e partidos de esquerda, a subversão das leis, a privação de direitos. A ditadura era composta por muitos campos repressivos. Apesar da repressão a livros ser uma ínfima parte desse contexto, analisar esse tema foi muito revelador sobre o todo. Compreender esse passado pode interessar a historiadores, jornalistas, pesquisadores e pessoas interessadas em saber como o nosso passado mal resolvido interfere no nosso presente caótico. Além disso, a lista inédita dos livros apreendidos merece atenção. Ela revela as obras e escritores que foram perseguidos pela repressão para além da censura oficial. Pode interessar aos estudantes de letras, literatura, jornalistas, mercado editorial, escritores.

Ana Caroline Silva de Castro é jornalista, mestre em comunicação social pela Umesp e doutora em teoria e pesquisa em comunicação pela USP. Em 2019, lança “Kaddish – prece para uma desaparecia”, biografia da professora e militante Ana Rosa Kucinski, desaparecida política da ditadura no Brasil.

Referências

  • ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. BNM – Projeto “Brasil: Nunca Mais”. Projeto A, TOMO I, 1985.
  •  ______. Brasil: Nunca Mais. Prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
  • CARNEIRO, M. L. T. Livros proibidos, Ideias Malditas: o Deops e as minorias silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade: Arquivo do Estado / SEC, 1997.
  • ISHAQ, V. A escrita da repressão e da subversão, 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012.

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