Coluna

Vozes da Amazônia

Conectando mentes para enraizar direitos das juventudes

24 de janeiro de 2023

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Inclusão digital precisa ser tratada como política pública e isso só acontece pela pressão popular, já que ao longo dos anos o acesso à internet não foi pensado para ser um braço democratizado das telecomunicações

Pororoca é como nós, povos amazônidas, chamamos o encontro do rio com o oceano. Um encontro que acontece em março, época em que o céu costuma chorar com mais intensidade nos territórios da Amazônia. Fica claro que as águas não pedem licença. Elas passam, elas rompem barreiras e é inevitável tentar conter o fenômeno que é capaz de inundar e transbordar, com sua intensidade, tudo o que estiver pelo caminho. Não à toa seu nome é Pororoca, palavra de origem tupi-guarani que significa “estrondo”. Esse encontro acontece em outras partes do mundo, mas a Pororoca só acontece aqui porque Pororoca é. E só é onde é.

Todavia, esse processo de silenciamento dos corpos d’água, do rio, não só tiram a sua própria vida mas decretam, também, a morte de um ecossistema inteiro. Porque a Amazônia é essa junção de seres humanes e não humanes que, de forma orgânica, nos faz compreender que a vida é isso. É esse organismo vivo interdependente, que coopera em prol da continuidade de todas as vidas neste planeta.

E é num cenário parecido o qual se encontram as juventudes amazônidas, com o advento da Covid-19, com os últimos quatro anos de governo Bolsonaro que, através da necropolítica, não só calou muitos de nós mas, também, desflorestou corpos, mentes e desmobilizou corações os substituindo por um veneno chamado apatia. A desilusão das juventudes é, inclusive, um dos riscos globais elencados pelo Global Risks Report do World Economic Forum de 2022, apontados como uma das possíveis – e mais latentes – consequências atreladas às multi crises que se relacionam com o meio ambiente, ou melhor, o todo ambiente.

As juventudes precisam ser encaradas por governos, empresas, universidades, sociedade civil, pelo terceiro setor como o que são: sementes do agora. Ser jovem no Brasil de 2023 é compor um público político, econômico e social que sente na pele e na alma, os impactos da crise climática e sem muitas perspectivas de horizontes mais resilientes e sustentáveis. Entretanto, o acesso a direitos, possibilidades e políticas públicas são essenciais para o crescimento dessas sementes.

E, nesse movimento de reflorestar mentes e corações, nós, da COJOVEM (Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável), uma organização formada por jovens amazônidas da sociedade civil, temos nos comprometido com o esperançar, com a germinação de futuros possíveis, imaginados e executados de forma técnica e sensível por aqueles que reproduzem seus sonhos em uma vida de lutas e que sentem o peso das estruturas de poder, as quais consideram as juventudes apenas uma opção no menu e se esqueceram de que para resolver problemas complexos atrelados às nossas vidas precisamos não só estar no menu, temos que sentar na mesa.

Ser jovem no Brasil de 2023 é compor um público político, econômico e social que sente na pele e na alma os impactos da crise climática e sem muitas perspectivas de horizontes mais resilientes e sustentáveis

Em “A Vida Secreta das Árvores”, um dos conceitos que mais me fascinam é a associação dos fungos com as árvores em cooperação. Quando cooperam, os fungos expandem suas redes pelo solo ao entorno da raíz da árvore, ampliando a capacidade de absorção de nutrientes e conexão com outras árvores, funcionando como uma espécie de internet da floresta. Acontece que quando fica sem fungos, a árvore perde grande parte da sua capacidade de comunicação, de absorção de nutrientes e torna-se mais vulnerável. O mesmo acontece com as juventudes frente a ausência de internet.

Segundo a Pesquisa Tic Domicílios 2021, do CGI (Comitê Gestor da Internet no Brasil), o Norte do Brasil é uma das regiões com maior dificuldade no que tange o acesso à internet. A ausência de internet, como abordado no documentário “A Maré tá pras Juventudes? As Multivozes da Exclusão nas Amazônias”, desenvolvido pela COJOVEM em 2020, vulnerabiliza as juventudes em todas as suas intersecções.

Os povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, jovens da Amazônia urbana, todos, de alguma forma, têm seus estudos, seus trabalhos, suas articulações, suas redes de informações confiáveis, a possibilidade de checar fatos, de fazer denúncias, o acesso a benefícios do governo e, consequentemente, seus direitos negligenciados frente ao cenário de ausência de conectividade.

A ausência de internet, por exemplo, impede que possamos denunciar crimes que acontecem nos nossos territórios e, impede a checagem de fatos e disseminação de fake news, das quais resultaram a perda de vidas de brasileiros durante a pandemia da Covid-19, onde o governo Bolsonaro defendia o uso de medicamentos ineficazes, na televisão, e que geraram consequências para diversos grupos de riscos.

Sendo assim, a exclusão digital afasta as pessoas do acesso à informação, acesso ao conhecimento e às tecnologias. Impede o acesso livre e de qualidade sobre a importância do acesso à internet para fortalecer a democracia brasileira. Logo, a inclusão digital precisa ser tratada como política pública, o que só será possível por meio da disseminação de informação para gerar uma pressão popular em cima do tema, já que ao longo dos anos o acesso à internet no Brasil não foi pensado para ser um braço democratizado das telecomunicações.

Todavia, para aqueles que ocupam a internet também temos desafios. E, nesse paradigma, se encontram o uso das plataformas sociais para a manipulação de mentes por algoritmos de aprendizagem de máquinas de plataformas de redes sociais, dando oportunidade para se compreender como essa comunicação em rede, processada num ambiente de polarização e crise, prolongada e como a circulação de conteúdos direcionadas a partir de algoritmos impactam na subjetividade e interferem no comportamento das pessoas.

Então, de que maneira será que isso se desdobra no processo de tomada de decisões políticas, econômicas e sociais desses indivíduos hiperconectados, onde grande parte dessa parcela são jovens?

Dessa costura de sonhos, saberes, lutas e juventudes nasceu o Programa A Maré tá pras Juventudes, o qual se perpassa por formações e mobilizações que atingiram mais de 500 mil pessoas. Além do desenvolvimento de pesquisas e uma agenda norteadora elaborada por 40 instituições de juventudes para a construção de políticas públicas no Estado do Pará, foi apresentada na COP27, em um painel junto ao Governador do Pará e presidente do Consórcio da Amazônia Legal, Helder Barbalho.

Assim como a internet, as Amazônias são carne tecida por fios de muitas vidas com sangue e cores diversas, é ecossistêmico e, portanto, plural. Ainda que a pele da terra se rasgue frente aos grandes projetos que não nos envolvem na construção da nossa própria narrativa, esse solo fértil ainda transborda, mesmo que de gota em gota, até formar rios que voam e que nutrem nascentes e corpos hídricos ao longo do Brasil capazes de, quando juntos, em cooperação, desaguarem em pororoca nas Amazônias.

Este é um convite, com afeto, não só para a expansão da nossa consciência sobre o fato de que nossos corpos e mentes são tecido farto de terra, floresta e água, são Amazônia e, por tanto, são resilientes e sábios. Entretanto, como toda matéria viva são finitos em sua existência e precisam de cuidados. A hora de reflorestar mentes, corações e praticar novas formas de existir através do mutualismo, da cooperação, é agora. É hora de desobedecer comedores de mundos e tecer o sonho em realidade.

Karla Giovanna Braga éengenheira sanitarista e ambiental; Co-fundadora e diretora de Gestão de Projetos e Sustentabilidade na Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável (COJOVEM), assim como atua na coordenação da equipe de Pesquisa da instituição, onde também atua como pesquisadora. É embaixadora da juventude pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), é representante da juventude do Norte do Brasil no Internet Governance Forum (IGF) e do Estado do Pará no Fórum da Internet no Brasil (FIB), sendo facilitadora do Programa Youth Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). É também conselheira da Cidade de Belém no segmento de Inclusão digital e cidades inteligentes no Programa Tá Selado, e coordena o Hub do Youth Climate Leaders no Estado do Pará, além de ser representante das juventudes na câmara técnica sobre juventudes e clima no Fórum paraense de Mudanças e Adaptações Climáticas (FPMAC).

Vozes da Amazôniaé uma coalizão formada por organizações, movimentos e coletivos socioambientais e culturais de dentro e fora da Amazônia brasileira. Surgida em julho de 2021, reúne visões, narrativas e territorialidades diversas, mas unidas com um único propósito: mobilizar e engajar toda a sociedade pela proteção da floresta, de seus povos e do equilíbrio climático do planeta.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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