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Pamela Figueroa
Processo constituinte que vai ser elaborado por órgão eleito por cidadãos é desafio de legitimidade democrática
Em 4 de julho de 2021 foi instalada no Chile a Convenção Constitucional, dando assim início ao processo de deliberação constitucional tão demandado pela sociedade chilena. O processo constituinte chileno foi definido como um momento histórico por duas razões: desenvolve-se em uma conjuntura histórica de mudança política e social – resultado de uma sociedade que demanda a atualização das instituições democráticas – e é a primeira vez na história que se elaborará uma constituição mediante um órgão constituinte eleito pelos cidadãos.
Embora o Chile seja considerado uma das democracias mais estáveis da América Latina, desde a década de 2010 vem se formando uma crise de confiança e legitimidade nas instituições políticas, que se expressou em baixos indicadores de apoio aos partidos políticos, ao Congresso, ao governo e às principais instituições públicas do país, assim como também a uma persistente baixa participação eleitoral.
As razões para a mudança constitucional no Chile se explicam a partir de dois fatores: a) o problema da legitimidade de origem, dado que a atual Constituição política foi promulgada sob o governo autoritário de Augusto Pinochet, e b) a questão de modernização da sociedade, pois a sociedade chilena evoluiu de maneira importante nos últimos 30 anos e as instituições políticas mostram rigidez frente essas mudanças. É assim que, apesar das reformas constitucionais de 1989 e 2005, que buscaram democratizar as instituições, em 2006 se inicia um ciclo de protestos sociais que questionaram o sistema político e econômico, e que se expressaram também em 2011, 2018 e finalmente em outubro de 2019.
Durante o segundo mandato da presidente Michelle Bachelet (2014-2018) foram desenvolvidas reformas importantes com foco em abordar a crise, entre elas, destaca-se o Processo Constituinte Aberto aos Cidadãos ( Proceso Constituyente Abierto a la Ciudadanía ), no qual, durante o ano de 2016, participaram mais de 200 mil pessoas abordando os desafios do país. Mesmo assim, as forças políticas representadas no Congresso não avançaram num acordo para sediar uma constituinte para deliberar um novo texto constitucional, e com a mudança de governo em março de 2018, o novo presidente, Sebastián Piñera, decidiu suspender o processo.
Ao não se resolver as principais demandas por mudança na sociedade, em outubro de 2019, mobilizações sociais impulsionadas por estudantes evadindo o sistema de pagamento do transporte público – devido ao aumento de preço que afetavam as precárias condições econômicas da maioria do país – resultou no que se tem chamado de “estallido social”. Depois de semanas de mobilizações persistentes e atos de violência, 11 dos 17 partidos políticos representados no Congresso elaboraram o Acordo pela Paz e Nova Constituição ( Acuerdo por la Paz y la Nueva Constitución ), o qual delineou um cronograma para mudança constitucional. Este acordo dá conta de canalizar demandas e o mal-estar dos cidadãos, por meio de um processo democrático, participativo e institucional, seguindo o padrão de processos políticos do Chile durante o século 20, no que se pode denominar institucionalismo transformador .
Embora o Chile seja considerado uma das democracias mais estáveis da América Latina, uma crise de confiança e legitimidade nas instituições políticas surgiu na última década
Em outubro de 2020, em meio à pandemia, desenrolou-se o Plebiscito por uma nova Constituição, no qual 78% dos participantes se manifestaram a favor da mudança constitucional, mediante uma Convenção Constitucional. Esta Convenção representa uma inovação democrática, ao incorporar a regra de paridade para sua eleição e tem 17 assentos reservados aos 10 povos originários do Chile, dentro dos 155 assentos que compõem o órgão.
A eleição das e dos representantes constituintes se levou a cabo em 15 e 16 de maio de 2021, e dadas as novas regras eleitorais (paridade [ paridad ], assentos reservados a povos originários e listas de independentes) resultou na incorporação de atores sociais que não se viam representados no Congresso ou em outras instâncias de representação política. Como resultado, dos 155 representantes, 77 são mulheres e 78 homens, 17 dos 155 são representantes dos povos originários do Chile e não existe nenhum grupo social ou político com maioria, por isso o diálogo será o caminho para a construção de acordos.
Dessa forma, no dia de sua instalação, a Convenção elegeu como presidente a dra. Elisa Loncon, mulher mapuche e professora universitária. Que uma mulher mapuche presida a Convenção Constitucional é uma boa notícia para o Chile. É o resultado de um processo de mudança social e política que se dá num contexto democrático e mostra a maturidade da nossa sociedade para olhar para sua história e, a partir dela, construir o futuro. Apesar dos temores de diversos setores, receosos com a possibilidade de renovação do pacto político e social do Chile mediante um processo constituinte democrático e participativo, instalou-se um órgão constituinte que surge das demandas por mudança na sociedade, de um acordo político amplo dos partidos que têm representação no Congresso e na vontade cidadã expressa nas urnas.
A instalação buscou inclusão e legitimidade. Até o momento, e a quatro meses desde o início de seu trabalho, a Convenção aprovou cinco conjuntos de normas para seu funcionamento e iniciou o debate dos conteúdos constitucionais em sete comissões permanentes de trabalho. A participação cidadã que inspira o processo foi expressa ao receber diversos setores da sociedade civil que apresentaram suas propostas aos representantes da Convenção durante as primeiras semanas de trabalho relativas a conteúdos constitucionais. Esperamos que isso seja a antessala de um trabalho de diálogo para a redação do texto constitucional.
Tradução de Gianfranco Caterina.
Pamela Figueroa é acadêmica do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago (Chile). Coordenadora do Observatório Nova Constituição.
Este texto é parte de uma série em que especialistas analisam o processo que culminou na assembleia constituinte chilena e como ela é afetada pelas eleições presidenciais, uma parceria entre o Nexo e o ODEC-USP (Observatório da Democracia no Mundo da Universidade de São Paulo).
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