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Quando olhamos hoje para o Brasil, sobressaem-se os múltiplos desafios colocados para a equipe que assume o governo federal em janeiro de 2023. É certo que as violações aos direitos humanos e a destruição de recursos naturais são práticas constituidoras de nossa sociedade, desde sempre concorrendo para que acabássemos nos tornando um dos países mais desiguais do planeta. A partir do processo de redemocratização, entretanto, parecíamos ter acordado para o fato de que essa dramática condição precisava ser revertida.
Assim, mesmo que com graus variáveis de vontade política e de competência administrativa, as lideranças escolhidas para assumir os destinos da nação desde 1988 demonstravam reconhecer sua responsabilidade em fazer avançar os compromissos consubstanciados em nossa lei maior com a cidadania, com o desenvolvimento, com a preservação ambiental, com a erradicação da pobreza, com a redução das desigualdades, com o combate às discriminações e com a absoluta prioridade no cuidado de nossas crianças e adolescentes.
Ao longo dos últimos anos, porém, pela primeira vez o Brasil pôde observar as consequências desastrosas de um discurso e de uma prática que desconsideram esses princípios basilares. A fome, a pobreza e a violência escalaram de forma assustadora. Cotidianamente, mulheres, negros, indígenas, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência e demais minorias políticas viram suas conquistas serem solapadas. Sem controle, a destruição da Amazônia e de outros biomas foi acelerada. Os cortes de recursos e os desmontes de políticas públicas de educação, saúde e segurança alimentar também mostraram seus efeitos e fragilizaram a resposta do Estado num momento crítico como a pandemia da covid-19. O país passou também a ignorar os compromissos firmados junto à comunidade internacional e a própria arquitetura do regime democrático se viu ameaçada.
Devido ao período peculiarmente sensível para o desenvolvimento físico, emocional, social e cognitivo que vivenciamos dos 0 aos 18 anos, crianças e adolescentes, em especial os negros, pertencentes a povos originários e comunidades tradicionais, com deficiência e aqueles em situação de pobreza e vulnerabilidade, foram mais fortemente impactados pelo descompromisso com a nossa Constituição.
Pesquisa Datafolha divulgada em 28 de outubro mostrou que 24% dos entrevistados afirmaram ter comida insuficiente em casa para matar a fome. Levantamento da Fundação Abrinq de 2021 aponta que cerca de 18,8 milhões de meninos e meninas até 14 anos estavam em situação de fome. O quadro é ainda mais grave para as crianças indígenas brasileiras. Ameaçadas pela paralização das demarcações de terras, pelo abandono da proteção a seus territórios e pelo avanço do desmatamento e do garimpo, da pesca e da caça ilegais, 30% delas são afetadas por desnutrição crônica, de acordo com o Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância.
Na saúde, nosso Programa Nacional de Imunizações, que já foi motivo de orgulho, enfrenta os efeitos do desmonte e do negacionismo. A média de cobertura vacinal no Brasil em 2021 foi de 60,8%, ante 95,1% em 2015, de acordo com dados do Ministério da Saúde analisados pelo jornal O Globo. A situação coloca crianças e adolescentes e até mesmo adultos em risco de serem acometidos por doenças consideradas até então erradicadas.
Além da retomada do orçamento, será preciso garantir uma governança capaz de articular ações intersetoriais em todas as pastas da nova administração
A pesquisa “Educação brasileira em 2022 – a voz de adolescentes”, realizada pelo Ipec a pedido do Unicef, aponta que 11% das crianças e adolescentes entre 11 e 19 anos – cerca de 2 milhões deles – estão fora da escola e que 21% dos alunos que frequentam a sala de aula pensaram em desistir nos últimos três meses. Isso porque as escolas não foram abandonadas à própria sorte apenas durante a pandemia. Mesmo após o fim das restrições às aulas presenciais, nossos sistemas de ensino não receberam o investimento necessário para trabalhar na recuperação das aprendizagens impactadas no período. Como resultado, os alunos dos ensinos fundamental e médio tiveram desempenho em português e matemática muito abaixo dos índices pré-pandemia no último Sistema de Avaliação da Educação Básica. Em alguns casos, o resultado médio voltou aos níveis aferidos em 2013.
A violência sexual, fenômeno cruel e devastador que deixa marcas para toda a vida, tornou-se uma epidemia invisível no Brasil. Quatro meninas com menos de 13 anos são estupradas por hora no país, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública compilados em 2022 a pedido do Instituto Liberta. Quase metade das vítimas (49,4%) são meninas negras, mesmo diante de indícios de subnotificação entre essa população. Segundo a Childhood Brasil, acontecem mais de 500 mil casos de exploração sexual infantil por ano, mas o número pode ser ainda maior, pois a sociedade insiste em fechar os olhos para esse crime.
Diante desse cenário tenebroso, não está nas mãos do governo Lula-Alckmin e da coalizão de partidos que se reuniram em torno de sua candidatura somente a tarefa de aprimorar e otimizar os mecanismos de enfrentamento de questões decisivas para a sociedade brasileira. O que está em jogo é um processo de reconstrução da capacidade de operação do Estado. Essa tarefa será fundamental em todas as áreas e, particularmente, para que crianças e adolescentes possam de fato ser tratadas com prioridade a partir de janeiro de 2023.
Além da retomada do orçamento de áreas vitais para essa população, como saúde, educação, assistência social e meio ambiente e clima, será preciso garantir uma governança capaz de articular ações intersetoriais em todas as pastas da nova administração. Da mesma forma, será preciso recuperar o protagonismo do governo federal na coordenação e apoio técnico e financeiro em áreas cuja responsabilidade na execução das políticas públicas é de estados e municípios. Também é urgente recompor e fortalecer conselhos e instâncias de participação e controle social, como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e as conferências e planos nacionais setoriais das mais diversas áreas.
Essas são algumas das medidas defendidas pela Agenda 227, movimento que reúne mais de 360 organizações da sociedade civil, responsável pela elaboração do “ Plano País para a Infância e a Adolescência ”, conjunto de propostas que permite ao Executivo federal efetivamente priorizar a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Iniciativas como essa e tantas outras mostram que sociedade civil está mobilizada, conhece as mazelas e as urgências que nos assolam, tem propostas e está disposta a cooperar com governos comprometidos com os direitos expressos na nossa Constituição e a cobrá-los para subir a régua das entregas. A dimensão do desafio de reconstruir o Brasil é proporcional à nossa convicção de que cuidar do presente e do futuro é para ontem.
Miriam Pragita possui formação em Liderança Executiva para o Desenvolvimento da Primeira Infância na Universidade de Harvard e em Ciência e Implementação de Políticas Públicas na Primeira Infância pelo Insper. É pós-graduada em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e integrante da equipe executiva e do Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227.
Lucas Lopes é cientista social, mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas, é ponto focal da Coalizão Brasileira pelo fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, membro da Comissão Técnica da Parceria Global pelo fim da violência contra crianças e adolescentes do município de São Paulo e integrante do Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227.
Gustavo Paiva é jornalista e professor licenciado, com pós-graduação em Literatura para Crianças e Jovens. É analista de relações governamentais do Instituto Alana e integrante da equipe executiva e do Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227.
Agenda 227é um movimento apartidário da sociedade civil brasileira que tem como objetivo colocar crianças e adolescentes no centro da construção de um Brasil mais justo, próspero, inclusivo e sustentável para todos, a partir da concretização da prioridade absoluta garantida à população de 0 a 18 anos pelo artigo 227 da Constituição Federal.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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