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Eduardo C. L. Marques
A ausência do governo federal nas políticas urbanas representa apenas a primeira face de uma crise múltipla a ser enfrentada pelos novos prefeitos, que assumirão o cargo desassistidos e sob intensa pressão social
Já é lugar comum escrever sobre as difíceis condições das cidades brasileiras, ainda mais em tempos de pandemia. O atual momento, entretanto, parece ser peculiar pela possibilidade de uma inflexão duradoura, para pior, em várias tendências positivas que vinham sendo construídas incrementalmente desde a redemocratização, articulando processos em vários níveis da federação. Por outro lado, precedentes históricos sugerem que o momento pode também trazer oportunidades para os prefeitos que ora elegemos, abrindo espaços para políticas inovadoras.
Nossas cidades são marcadas por elevada desigualdade social, intensa precariedade, desigual acesso a serviços e políticas públicas, especialmente em periferias e favelas, além de elevada segregação socioespacial e violência por parte do crime organizado — incluindo milícias —, e das forças do Estado. Embora proliferem questões relacionadas à funcionalidade — como a mobilidade urbana —, o principal eixo dos problemas se associa a desigualdades sociais, sendo mais intensamente atingidos os mais pobres, os negros e os habitantes de favelas e periferias. A associação entre posição social minoritária e piores condições de vida não é específica do Brasil e, como sumarizou o sanitarista italiano Giovanni Berlinguer, infelizmente, “os pobres morrem antes”. Como mostra a pandemia de covid-19, nossas desigualdades certamente intensificam o problema.
Apesar disso, é quase consensual entre estudiosos afirmar que nossas condições urbanas melhoraram desde a redemocratização, embora de forma conflituosa e incremental. Esse processo começou entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990, em especial por dinâmicas locais. Impulsionada por movimentos sociais e por uma intensa competição político-eleitoral, nossa recém retomada democracia levou aos executivos municipais de muitas cidades brasileiras coalizões políticas comprometidas com a redução das desigualdades e a promoção de bem-estar. Seguiu-se um intenso processo de inovações redistributivas, criando muitas das políticas disponíveis hoje em dia — urbanização de favelas, regularização de loteamentos, locação social, mutirões autogestionários, zoneamentos e tarifas sociais, planejamento visando a função social da propriedade e participação institucionalizada, entre outras. A competição eleitoral fez com que até mesmo os governos que não gostassem de tais políticas não as destruíssem completamente. E, com o tempo e a alternância de poder, consolidou-se uma nova agenda urbana redistributiva.
A partir do início dos anos 2000, essa agenda se nacionalizou. Com a criação do Ministério das Cidades, o governo federal retornou à regulação e aos investimentos em cidades de forma mais integrada (e redistributiva) do que na ditadura. Em um esforço federativo de construção institucional ímpar, foram elaborados diversos planos setoriais, programas, fundos e esferas participativas, além de incentivos à capacitação e aos planejamentos locais, dimensão imprescindível para a solução do problema. A partir de 2009, somaram-se a isso massivos investimentos em habitações novas, urbanização de favelas e mobilidade — embora tais tentativas também tenham atropelado o esforço anterior, considerando a lógica dos programas. O insulamento político e a intersetorialidade ficaram abaixo do necessário e parte das ações locais sofreu com improviso, falta de planejamento e baixa qualidade. Entretanto, não restam dúvidas de que esse período representou a melhor conjugação que já tivemos entre regulação e investimento federais e políticas locais mais capazes e diversificadas.
O quadro posterior a 2015, por outro lado, se mostra cada vez mais desalentador. No governo Temer, as estruturas federais se mantiveram, mas foram esvaziadas em termos financeiros e pararam a indução e o fomento a políticas locais. A isso se seguiu o “desmonte desorganizado” do atual governo. Estruturas e programas da área urbana foram extintos, desarticulados ou misturados a outros sem qualquer lógica discernível. As ações parecem se resumir à crença em soluções via mercado e à promessa (ou esperança) de alguma obra, de qualquer tipo e em qualquer lugar, desde que prometa dividendos políticos de curto prazo.
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