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Walter Aranha Capanema
É preciso que o Judiciário brasileiro compreenda como funciona o modus operandi desse fenômeno antes de propor normas jurídicas que combatam a desinformação
Um dos legados que Donald Trump gostaria de deixar é a criação da expressão “fake news”. O presidente americano certamente ajudou a popularizar o conceito, mas, ao afirmar ter cunhado ele próprio o termo, foi rapidamente desmentido pelo Merriam-Webster, um dos dicionários de língua inglesa mais famosos: a expressão já existia no século 19 . Se Trump pensava em 2017 as fake news como uma qualificação pejorativa às empresas de mídia que publicassem notícias que lhe fossem desfavoráveis, o significado que o termo tomou ao longo dos anos parece ter se ampliado, passando a vincular as fake news à desinformação transmitida e compartilhada pela internet.
A desinformação não surgiu com a internet. Os livros de história já nos ensinaram o quanto a mentira e a proliferação de boatos pode ser prejudicial, como no caso do boato preconceituoso de que os judeus foram responsáveis pela peste negra (também chamada de peste bubônica) do século 14 , ou ainda ser utilizada como estratégia de guerra, como a denominada “Operação Fortitude”, organizada pelos países aliados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para confundir os nazistas a respeito das operações do Dia D .
As fake news, portanto, constituem um problema antigo que a modernidade atribuiu uma nova denominação e novos efeitos, assim como ocorreu com as agressões e intimidações, que passaram a atender por “bullying”. São problemas sérios, mas não necessariamente novos. O que acontece é que a internet amplificou a extensão dos seus danos.
Na atualidade, a própria eleição de Trump nos EUA e o plebiscito do Brexit fizeram acender o alerta para os perigos causados pelas fake news: a falsa informação, baseada nos medos dos eleitores, poderia guiar a sua vontade na hora do exercício do voto.
O assunto ganhou tal destaque na imprensa, a ponto da expressão “fake news” ser escolhida como a “palavra” de 2017 pela editora Collins . Como consequência, o poder público brasileiro teve que começar a pensar em iniciativas para combatê-las. Organizaram-se seminários, reuniões. Criaram projetos de lei, investigações e campanhas de conscientização.
Nesse contexto, o Congresso Nacional instaurou em setembro de 2019 a CPMI “das fake news” (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito), constando como seu presidente o senador Ângelo Coronel (PSD-BA) e, como relatora, a deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA).
As estratégias de combate às fake news certamente passam por medidas legislativas que estabeleçam sanções mais eficientes
Na realidade, essa CPMI possuía um amplo objeto: além de investigar a possibilidade de uso das fake news nas eleições de 2018, também trata do assédio e incitação criminosos.
Tive a oportunidade de ser ouvido na primeira audiência pública dessa CPMI, realizada no dia 22 de outubro de 2019, e procurei contribuir com algumas sugestões para o devido enfrentamento desse problema, como a definição de um conceito para fake news; a análise do modus operandi do fenômeno, dos seus efeitos e das normas jurídicas aplicáveis; e a definição de estratégias para repressão e o combate às fake news.
Primeiramente, para que o fenômeno seja devidamente combatido, é preciso que ele seja corretamente caracterizado, de modo a permitir o correto direcionamento das medidas de prevenção e combate. Tendo em vista o contexto político das fake news, apresentei a seguinte sugestão conceitual aos integrantes da CPMI: “fake news é a desinformação com a intenção de prejudicar alguém”. Já no campo eleitoral, as fake news seriam “a desinformação para beneficiar um candidato, partido ou coligação”. Na minha visão, o candidato que utiliza a desinformação para alardear um feito inexistente é tão lesivo quanto aquele que utiliza as notícias falsas para ofender um concorrente. Ou seja, ambos atuam na contaminação do debate político.
É fundamental também compreender como o fenômeno ocorre: as fake news costumam ser propagadas por usuários inocentes, que acreditam nessas mentiras, mas também por usuários devidamente remunerados, com perfis falsos que automatizam a disseminação (“robôs” ou “bots”).
Quanto aos efeitos do fenômeno, é importante analisar os casos já ocorridos, como o da dona de casa Fabiana Maria de Jesus . Em 2014, uma página no Facebook chamada “Guarujá Alerta”, com 56 mil curtidas, publicou informações sobre uma mulher que supostamente estaria “raptando crianças para realizar magia negra” na região. Uma multidão confundiu Fabiane com a suposta sequestradora e a espancou até a morte. Trata-se do primeiro caso de repercussão no Brasil em que boatos pela internet serviram como fio condutor para uma história de final trágico.
Podemos lembrar também do falso anúncio de que haviam inaugurado uma suposta sede do Sine (Sistema Nacional de Empregos) em Niterói em 2019. A notícia se espalhou por meio de áudios no WhatsApp e postagens no Facebook que afirmavam haver cerca de 1.500 vagas na suposta nova unidade do Sine. Dezenas de pessoas passaram a madrugada em uma longa fila que tomou uma das principais avenidas de Niterói.
Logo, os efeitos das fake news são os mais diversos na sociedade. Mas é consenso que há sempre a utilização de técnicas psicológicas (“engenharia social”) para despertar um comportamento no seu destinatário: querem incitá-lo a tomar uma determinada atitude (comissiva ou omissiva).
A partir da integral compreensão do fenômeno, de sua forma de atuação e dos seus efeitos, passa-se a verificar se o sistema jurídico vigente consegue enfrentar corretamente o problema, ou se existe algum gap normativo. Pelo que pesquisei, as nossas normas não reprimem de forma eficiente esse problema. Veja, por exemplo, o crime de divulgação de fatos inverídicos, que consta no artigo de nº 323, do Código Eleitoral : a pena é pequena (detenção de dois meses a um ano ou pagamento de 120 a 150 dias-multa) e não há sequer um agravante para a sua prática na internet. A pena só é agravada caso o crime seja cometido pela imprensa, rádio ou televisão. Além disso, o crime só é aplicável para a conduta realizada durante o período de propaganda eleitoral apenas.
Seria de suma importância alterar a legislação de propaganda eleitoral. A lei de nº 9.504/97 e a resolução de nº 23.610/2019 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinam que só pode ser realizada propaganda eleitoral paga na internet por meio de impulsionamento de conteúdo em redes sociais ou em ferramentas de procura. Com isso, na prática, determinou-se um oligopólio de empresas americanas: Facebook, Google e Twitter.
As estratégias certamente passam por medidas legislativas que estabeleçam condutas precisas e sanções mais duras. Mas, ainda, seria necessário que o Judiciário compreendesse como os fatos jurídicos ocorrem na internet, para ordenar medidas de modo a dificultar a proliferação das fake news.
Portanto, para o efetivo enfrentamento desse problema, é preciso, fundamentalmente, agir com razão, organização e estratégia. Não podemos ceder ao ódio, à mentira e ao misticismo.
Que a internet continue livre e que possamos respeitar as nossas diferenças.
Walter Aranha Capanema é advogado, consultor e professor. Coordena as prerrogativas de processo eletrônico e de inteligência artificial da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil). Coordenador-geral e professor da pós-graduação em direito digital do IERBB/MPRJ (Instituto de Educação Roberto Bernardes Barroso do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro). Coordenador-geral e professor dos cursos de extensão em direito eletrônico e proteção de dados da Emerj (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro) e diretor de inovação e ensino da Smart3.
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