Pessoas em situação de rua e o exercício dos direitos reprodutivos

Debate

Pessoas em situação de rua e o exercício dos direitos reprodutivos
Foto: Alexandre Schneider/Getty Images

Virginia Isaura Silva Perrucho


16 de outubro de 2021

Liberdade e autonomia para decidir são princípios controvertidos pela cultura autoritária arraigada em parte dos gestores e profissionais de saúde

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Em tempos de estímulo ao individualismo e afastamento do Estado como garantidor de justiça e equidade, exacerbado por fanatismo, conservadorismo e reacionarismo, a discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos, uma conquista do século 20, da esfera dos direitos humanos, perde espaço, relativizada pelo discurso de representantes de segmentos antidemocráticos dos governos e alguns grupos da sociedade, de que há outras prioridades, face à pandemia, o desemprego, a fome e outras crises no Brasil e no mundo.

Ao abordar o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos entre as pessoas em situação de rua o grande fundamento jurídico que aparece são os princípios da autodeterminação, da solidariedade, da dignidade humana, da proteção aos mais pobres, tão bem expressos nos artigos 1º a 4º da Constituição Federal Brasileira de 1988, entre os direitos fundamentais. Tais princípios expressam o compromisso assumido pelo país em assegurar às populações mais vulneráveis, e, certamente mais à população em situação de rua, as condições de acesso à saúde sexual e reprodutiva na perspectiva dos direitos à liberdade de viver a sexualidade com prazer, a autonomia sobre o corpo, o controle da fecundidade , com acesso a concepção ou contracepção e a serviços qualificados que esclareçam, escutem e ofertem meios para escolha livre dos melhores procedimentos em saúde reprodutiva.

Não é isso que se encontra de forma majoritária nos serviços de saúde pública do país (e mesmo em muitos privados). Liberdade e autonomia para decidir, especialmente quando se refere à serviços de saúde que atendem a população em situação de rua, são princípios controvertidos pela cultura autoritária arraigada numa grande parte dos gestores e profissionais de saúde, que partem do pressuposto de que detém o conhecimento sobre o que é bom para essas pessoas, e que aquilo que sua análise e conhecimentos prévios tem como verdade são absolutos. Saúde, seja sexual, reprodutiva ou em qualquer das suas facetas, para prevenir doenças e promover o bem-estar biopsicossocial, obrigatoriamente, precisa esclarecer de forma simples e compreensível e escutar o conhecimento que as pessoas trazem previamente sobre o assunto, e, somente assim, ofertar as possibilidades de procedimentos que estão disponíveis para livre escolha.

Ainda que leis regulem o direito e políticas estabeleçam diretrizes para a saúde sexual e reprodutiva no Brasil, na Bahia e em Salvador, principalmente na Atenção Primária, mas também nos diversos níveis da atenção, faltam investimentos adequados em atividades sistemáticas de educação em saúde tanto do ponto de vista de qualificação do pessoal quanto dos recursos audiovisuais e pedagógicos, falta espaço para diálogo com as pessoas em situação de rua e prepondera a oferta sem reflexão de métodos contraceptivos, muitas vezes sem avaliação clínica e laboratorial regular e suficiente para monitorar os métodos ofertados (por indução a/os pacientes) e com isso poder minimizar os efeitos adversos de determinados produtos.

O compromisso assumido pelo país é assegurar às populações mais vulneráveis o acesso à saúde sexual e reprodutiva, mas não é isso que se encontra de forma majoritária nos serviços de saúde pública

Pensando no princípio da autodeterminação, e na possibilidade de decidir sobre o planejamento reprodutivo, é praticamente inexistente a oferta de orientação e tratamentos para os que querem conceber, sendo a infertilidade uma questão cuja discussão, especialmente com a população em situação de rua, parece ser tomada como desnecessária, afinal de contas, as condições de vulnerabilidade “justificam” a suposta impossibilidade de uma pessoa nessa condição conceber, em algum momento de sua vida. Desconsidera-se assim que pelo princípio da dignidade humana e da solidariedade social, todos em uma sociedade, e principalmente o Estado, devem contribuir para restaurar as condições de vida e permitir a uma pessoa pobre também ter a sua família. A escassez de tratamentos públicos para infertilidade no Brasil também reflete a desigualdade e a injustiça social.

Somente pela persistência no diálogo, pela exaustão das vias para a garantia dos direitos humanos com a participação dos diversos segmentos democráticos da sociedade com os governos, os direitos sexuais e reprodutivos poderão alcançar o patamar proposto conceitual e normativamente na Política de Saúde das Mulheres e Homens, no que toca o Planejamento Reprodutivo.

Principalmente os movimentos de ativistas pelos direitos de homens, mulheres, crianças e adolescentes, população em situação de rua, LGBTI podem exercer seu direito e pautar os órgãos de defesa, políticos, gestores e profissionais de saúde fiscalizando as metas e ações pactuadas, denunciando a adoção de práticas na saúde reprodutiva que estejam desconectadas com o que a política pública de saúde estabelece.

Virginia Isaura Silva Perrucho é assistente social, especialista em saúde pública e bacharel em direito. Aposentada pelo Hospital Especializado Octávio Mangabeira – Sesab e técnica de atendimento integrado da atenção primária em saúde.

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