A necessidade de não deixar as pessoas que migram e se refugiam para trás

Debate

A necessidade de não deixar as pessoas que migram e se refugiam para trás
Foto: Ilustração Rafaela Ranzani / Alkis Konstantinidis/Reuters

João Carlos Jarochinski Silva


18 de outubro de 2021

A dificuldade de garantir a sua presença no território e atender a necessidades básicas faz com que os direitos reprodutivos dessa população passem a ser vistos como privilégios

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A frase “não deixar ninguém para trás” faz todo o sentido em um mundo cada vez mais marcado pela mobilidade humana. Em termos quantitativos, o século 21 registra o maior número de pessoas circulando ao redor do globo, pelos mais variados fatores. Ao mesmo tempo em que a mobilidade aumenta seus números, também se verifica o crescimento de perspectivas políticas que vislumbram nessas pessoas sujeitos que não merecem ter seus direitos contemplados em plenitude, notadamente quando oriundos de outros países, em uma perspectiva que vislumbra a presença destas em um território como uma mera liberalidade do país receptor, o que justificaria o fato destas serem vistas como inferiores em termos de direitos quando comparadas às nacionais.

Esta maneira de ver a questão se torna ainda mais presente quando os movimentos migratórios se tornam mais volumosos, o que na maioria dos casos decorre de situações que forçam as pessoas a deixarem seus locais por perseguições de diversas montas: da fome, de desastres naturais e mudanças climáticas, além da ausência de uma perspectiva de futuro no local em que se encontram. Nesse tipo de mobilidade, são comuns referências a uma suposta “crise”, nos quais as respostas emergenciais, invariavelmente, não respeitam plenamente marcos legais de proteção e de direitos, pois se teria a justificativa de que o quantitativo de pessoas a serem atendidas impede o atendimento conforme os preceitos “normais”, fornecendo a autorização ética e legal para que se construam quadros de menor proteção ou a própria repulsão dessas pessoas.

Exemplos de ações como essas são abundantes em todo o globo, como demonstram as diversas notícias vindas da fronteira sul dos Estados Unidos e dos países ao redor do Mar Mediterrâneo. Na América do Sul também se vive essa difícil realidade, pois na última década houve um significativo aumento da mobilidade dentro do continente com a migração de pessoas venezuelanas que geraram diferentes respostas dos países da região e que atestou a dificuldade dos países de conduzir uma resposta regional ou cooperativa para a temática.

Ao mesmo tempo que a mobilidade aumenta, também se verifica o crescimento de perspectivas que vislumbram nessas pessoas sujeitos que não merecem ter seus direitos plenamente contemplados

Quando não se reage com a repulsão por meio de obstáculos físicos, a expulsão ou pela criação de barreiras à regularidade migratória dessas pessoas, os locais que praticam uma dinâmica de recepção e acolhimento acabam por priorizar medidas de segurança alimentar e abrigamento, o que é, sem dúvida, muito importante. Porém, também é bastante expressiva a enorme dificuldade em contemplar outros aspectos relevantes da vida humana, ainda mais em um contexto de forte feminização e de maior presença de crianças e adolescentes nos movimentos migratórios, como os estudos demonstram.

A gestão migratória por si só é bastante complexa, pois implica uma colaboração de entidades focadas em realidades distintas para atender às pessoas migrantes e refugiadas, numa necessária organização multinível de todos esses segmentos na busca por contemplar a proteção e o cuidado de forma ampla. Esse tipo de medida necessita ser concertada a nível internacional e, posteriormente, para uma integração social bem-sucedida ao nível federal, estadual e local/municipal. Dentro dessa amplitude de ações, percebe-se nos últimos anos o aumento da atenção aos direitos reprodutivos dessa população, mas dificuldades diversas têm complicado que esses direitos consigam ser assegurados de forma plena.

Destaca-se que os direitos reprodutivos possuem dificuldades de serem assegurados para as próprias populações nacionais em diversas localidades, por fatores que vão da falta de estrutura para a contemplação dos cuidados necessários, mas também por uma ideia bastante equivocada do que são direitos reprodutivos. Para a comunidade migrante e refugiada tais obstáculos são ainda mais presentes, pois a visão de simplesmente garantir a sua presença no território e atender algumas de suas necessidades básicas prejudica que sejam realizadas ações no sentido de contemplar os direitos reprodutivos, os quais passam a ser vistos como “privilégios” ou algo que as pessoas migrantes e refugiadas não devam buscar. A própria construção hierárquica em termos de cuidados faz com que dificilmente essa questão apareça como um tema de acolhida e integração.

Dentro dessa lógica de prioridades, há que se destacar o fato de que boa parte do atendimento às pessoas migrantes e refugiadas seja realizada por entidades da sociedade civil de forte viés religioso, que por mais que assumam compromissos e que cuidem dessa população de forma ampla, acabam, em algumas situações, mesmo que de forma não intencional, colocando os direitos reprodutivos abaixo na escala de ações a serem desenvolvidas, pois vislumbram questões morais relativas a esses direitos.

Outro elemento importante dessas dificuldades decorre de que parte das estruturas criadas para o atendimento dessa população não consegue resguardar um ambiente capaz de possibilitar o atendimento adequado das demandas, assim como o exercício da sexualidade desses indivíduos sem discriminação, garantidor da autonomia corporal, pois, via de regra, são ambientes coletivos em que a disciplina e o controle dos corpos são realizados, fazendo com que o direito à intimidade e a manifestação da livre vivência encontrem pouquíssimos espaços de abrigamento e resguardo, o que, por si só, dificulta o exercício pleno desses direitos.

Quando se analisa o caso brasileiro, verifica-se, ainda, que elementos muito presentes na realidade nacional, como a violência de gênero, a desigualdade social, a discriminação de raça/cor, afetam diretamente essa população migrante, que além de ser atingida por essas realidades, tem no fato de serem migrantes e refugiadas ainda mais um elemento de preconceito e dificuldade para o exercício desses direitos, além de aumentarem a sua vulnerabilidade, principalmente de mulheres, crianças e adolescentes.

Diante desses contextos, há que se afirmar que em termos de direitos reprodutivos, permitir o acesso a território seguro e documentação, garantir abrigamento e políticas de facilitação da busca de renda, entre outras atitudes, não significa que não se deixou essas pessoas migrantes e refugiadas para trás. Nesse campo, a fronteira ainda persiste e segrega, a ponto de muitas pessoas ainda estarem fora e não poderem exercer os seus direitos.

João Carlos Jarochinski Silva é professor do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Fronteiras da UFRR (Universidade Federal de Roraima).

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