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Emanuelle Goes
Movimento declarou em documento que a liberdade reprodutiva era essencial para as raças discriminadas e reivindicou ao Estado a garantia dos direitos reprodutivos
“As mulheres negras brasileiras opuseram o direito pleno à vida e à felicidade não apenas enquanto indivíduos, mas enquanto membros de uma mesma comunidade de destino” (Declaração de Itapecerica da Serra, 1993)
Quando acionamos a justiça reprodutiva, temos pontos de confluências entre o que o movimento de mulheres negras reivindicava na declaração de Itapecerica da Serra (1993) e a justiça reprodutiva, conceito criado pelo movimento de mulheres afro-estadunidenses, latinas e asiáticas após a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento no Cairo em 1994.
O movimento de mulheres negras estadunidenses, latinas, indígenas e asiáticas lança sentidos na criação da justiça reprodutiva, que reconhece as singularidades das mulheres e suas especificidades, assim como os contextos em que estão inseridas e o fato de que são atravessadas pelo racismo, classismo, patriarcalismo e opressões correlatas. Com isso, parte do entendimento que a justiça reprodutiva fornece um ambiente político para um conjunto de ideias, aspirações e visões que engloba todas as questões relacionadas à justiça social e aos direitos humanos.
No Brasil, o movimento de mulheres negras declarou no documento de Itapecerica da Serra que a liberdade reprodutiva era essencial para as raças discriminadas e reivindicou do Estado brasileiro a garantia dos direitos reprodutivos, assegurando condições para a manutenção da vida, necessárias para que as mulheres negras pudessem exercer a sua sexualidade e seus direitos reprodutivos controlando a sua própria fecundidade, decidindo se querem ou não ter filhos. Para tanto, afirmavam que o Estado deveria garantir informações e acesso a serviços de saúde para atenção de boa qualidade à gravidez, ao parto e ao aborto.
Essa confluência ocorre porque as experiências de mulheres que pertencem a grupos racialmente oprimidos são intersecções transnacionais que ultrapassam barreiras. Corpos que são aprisionados no racismo patriarcal que impede qualquer exercício relacionado à reprodução. As denúncias dos movimentos de mulheres e feministas do Sul Global que fazem parte de grupos racialmente oprimidos, assim como as evidências científicas que são contextualizadas com o processo histórico, vai nos mostrar como funcionam as hierarquias reprodutivas a partir da biopolítica da vida das mulheres e seus corpos e comunidades.
Parir ou abortar, uma humanidade a ser alcançada. No Brasil, as mulheres ainda morrem de morte materna, mas são as mulheres negras as principais vítimas. Morrem ao parir na procura pelos serviços de saúde e morrem dentro da maternidade. E morrem ao abortar, sendo a quarta principal causa de morte materna, principalmente porque as mulheres realizam a interrupção da gravidez de forma insegura e insalubre. A morte materna é a face mais nítida do racismo e de suas diversas manifestações. As várias pesquisas nos mostram que o risco de morte materna é maior para as mulheres negras. São as principais vítimas de violência obstétrica, estando submetidas a procedimentos desumanizados.
No Brasil, as mulheres ainda morrem de morte materna, mas são as mulheres negras as principais vítimas
Quanto à gravidez e maternidade na adolescência, também são as meninas negras as principais vítimas, sendo elas também as que mais sofrem violência sexual que muitas vezes geram gravidezes que deveriam ser interrompidas legalmente, pois neste caso o aborto é permitido. No Brasil, as meninas e adolescentes negras têm seus corpos hipersexualizados desde muito cedo, as opressões interseccionais de gênero, raça, classe e geração as levam para uma cadeia de violências e violações.
A ideia da esterilização como mecanismo de controle populacional e de corpos ainda persiste. Mulheres em contexto de prisão ou em situação de rua são as principais vítimas das esterilizações involuntárias. São mulheres que geralmente têm seus corpos e suas vidas judicializadas e que são deslegitimadas no exercício da maternidade, são aquelas que não a quem não é dado o direito de decidir. As violações sofridas por essas mulheres é a injustiça reprodutiva legitimada pelo Estado que as esteriliza.
Mesmo depois de parir, as mulheres negras têm os seus direitos reprodutivos ameaçados pela violência do Estado, que extermina e encarcera os jovens negros. O genocídio da juventude negra e o seu encarceramento é uma questão de justiça reprodutiva. Ter filhos, vê-los nascer e crescer é um direito, o exercício da maternidade é um direito, deveria ser uma escolha para todas as mulheres.
A garantia dos direitos reprodutivos pressupõe, para além do acesso humanizado e integral aos serviços de saúde reprodutiva, a garantia de direitos mais amplos como acesso a emprego, saneamento básico, educação, moradia e habitação. Para que os direitos reprodutivos sejam plenos, será preciso enfrentar o racismo patriarcal, colocando essas garantias no centro das lutas e reivindicações dos movimentos feministas, de mulheres e negros, assim como no centro das políticas públicas que precisam efetivamente utilizar a lente interseccional para enxergar todas as mulheres nas suas diversidades, identidades e opressões.
As ativistas pela justiça reprodutiva da ACRJ (Comunidades Asiáticas pela Justiça Reprodutiva, na sigla em inglês) dizem que“justiça reprodutiva é importante porque diz a verdade sobre nossos corpos, nossas vidas, nossas famílias, nosso mundo ”. Nesta confluência, quando recuperamos a Declaração de Itapecerica da Serra, o movimento de mulheres negras reivindica direito pleno à vida e à felicidade não apenas enquanto indivíduos, mas enquanto membros de uma mesma comunidade de destino. Aqui estamos juntas em demandas e direitos e sabemos que, para alcançarmos tudo isso, é preciso justiça: social, racial e reprodutiva.
Emanuelle Goes é doutora em saúde pública, pesquisadora pós-doc do CIDACS ( Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde) da Fiocruz Bahia e pesquisadora de Iyaleta – Pesquisa, Ciência e Humanidades.
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