Como se caracteriza a violência contra crianças no Brasil

Debate

Como se caracteriza a violência contra crianças no Brasil
Foto: Rene Bernal/Unsplash

Sofia Reinach, Amanda Lagreca, Betina Warmling Barros e Samira Bueno


14 de dezembro de 2021

País registrou ao menos 136 casos do tipo por dia em 2021. Cálculo considera dados do primeiro semestre de 12 estados

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Entre os dias 2 e 8 de dezembro de 2021, a Fundação José Egydio Setúbal promoveu o 3º Fórum de Políticas Públicas da Saúde na Infância, tendo como foco a temática da violência contra crianças e adolescentes. Apesar de ser uma realidade cotidiana do país, ainda se trata de um fenômeno pouco retratado, com estatísticas frágeis. Além disso, a pandemia do novo coronavírus exigiu a implementação de medidas rígidas de isolamento social, o que alterou significativamente o cotidiano da população, especialmente das crianças. Durante praticamente todo o ano de 2020 e parte do ano de 2021, as escolas foram fechadas e os serviços públicos de saúde, assistência social e segurança pública tiveram suas rotinas alteradas. Esse contexto aumentou ainda mais a preocupação acerca da exposição das crianças a situações de violência. Buscando contribuir para a melhoria das estatísticas de crimes contra crianças e sanar parte das dúvidas sobre alguns dos riscos vividos por elas durante a pandemia, a Fundação José Egydio Setúbal e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública estabeleceram uma parceria que teve como primeiro fruto o levantamento “Violência Contra Crianças e Adolescentes (2019-2021)”.

Apesar das dificuldades inerentes ao fato de que, no Brasil, não existe uma padronização dos registros de Boletins de Ocorrência e nem um sistema universalmente implementado de compilação desses registros criminais, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública vem trabalhando para o aprofundamento do conhecimento acerca da violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Nos últimos dois anos, o Fórum trouxe à tona dados de MVI (Mortes Violentas Intencionais), que agregam os crimes de feminicídio, homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de mortes e mortes decorrentes de intervenção policial, e de estupro desagregados por idade no Anuário Brasileiro de Segurança Pública , além da realização do Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil , em parceria com a Unicef. Esses dados, além de apresentarem números exorbitantes, demonstram que a violência contra crianças e adolescentes, no Brasil, reúne dois diferentes fenômenos. Por um lado, a violência doméstica é responsável pela maior parte das mortes de crianças de 0 a nove anos e dos estupros que afetam, majoritariamente, meninas de até 14 anos. Por outro, a violência urbana mata, anualmente, milhares de adolescentes, majoritariamente negros e do sexo masculino.

Nesse sentido, o levantamento intitulado “Violência Contra Crianças e Adolescentes (2019-2021)”, divulgado pelo Fórum e promovido pela Fundação J. E. Setúbal e pelo Nexo, inova ao compilar dados inéditos de outros tipos de violência contra crianças e adolescentes, especialmente crimes não-letais. Esses dados nunca haviam sido levantados no país e consideram os seguintes tipos penais: maus-tratos, lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, exploração sexual, estupro e MVI. As informações foram acessadas por meio da Lei de Acesso à Informação, nos estados de Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo entre 2019 e 2021. No total, foram identificados 129.844 casos, sendo 56,6% de estupro, 21,6% de maus-tratos, 18,1% de lesão corporal em contexto de violência doméstica, 2,9% de mortes violentas e 0,8% de exploração sexual.

Sendo assim, pela primeira vez, foi possível compreender o perfil das vítimas de cada um dos tipos de crime e a quais tipos de violência as crianças de cada uma das faixas etárias estão mais expostas. Possivelmente esses perfis, construídos a partir de uma amostra dos estados do país, devem se repetir em outros locais.

Os resultados do levantamento demonstram que o crime com o maior número de registros é o estupro que, como já foi mencionado, vitimiza especialmente meninas de até 14 anos. Já os crimes de maus-tratos são o tipo penal com mais registros de vítimas das faixas etárias mais baixas, tendo mais de 60% das vítimas na faixa etária entre 0 e nove anos. As vítimas de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, uma qualificadora criada pela Lei Maria da Penha, têm a maior parte das vítimas do sexo feminino entre 15 e 17 anos, porém 26% delas estão na faixa de 10 a 14 anos, o que demonstra como a violência de gênero, que vitimiza milhares de mulheres no país, tem início ainda na infância. Já as mortes violentas têm a maior parte das suas vítimas do sexo masculino, negros na faixa etária de 15 a 17 anos. Por fim, o crime de exploração sexual afeta a maior parte de vítimas negras, do sexo feminino na faixa etária entre 10 e 17. No entanto, esse é o tipo penal com menor número de registros, o que possivelmente denota a significativa subnotificação que se relaciona com os crimes também conhecidos como “prostituição infantil”, um tipo de violência que pouco se fala, porém a muitos afeta no Brasil.

Além disso, foi possível observar entre 2019 e 2020 que os crimes não-letais apresentaram queda significativa dos registros. No mesmo período, que coincide com o início da pandemia de coronavírus, o número de mortes violentas cresceu. No entanto, de 2020 para 2021, houve uma inversão. Ou seja, os crimes não-letais apresentaram crescimento e as mortes violentas, redução.

Violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Como um todo, casos caíram em 2020, mas voltaram a subir em 2021

As mortes violentas intencionais são, em geral, menos suscetíveis à subnotificação, por conta das provas evidenciais que os homicídios e os tipos correlatos produzem. Já os crimes que dependem da comunicação das vítimas ou familiares nas delegacias e órgãos policiais sofreram queda nos períodos de maior isolamento social, como já fora demonstrado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública . O que se verificou no caso de violências não-letais contra crianças no Brasil foi exatamente essa tendência. Ou seja, as restrições de circulação, alteração de horários de funcionamentos de órgãos públicos e o medo do vírus podem ter feito com que os registros reduzissem. Um forte indício para isso é que no primeiro semestre de 2021 os registros voltaram a subir, mas ainda não nos níveis encontrados no período pré-pandemia. Ainda que no primeiro semestre de 2021 tenhamos vivido a segunda onda do vírus no país, o funcionamento de serviços essenciais foi menos afetado por conta de diversas adaptações no atendimento que já haviam sido realizadas pelas instituições no ano anterior. Além disso, sabe-se que os índices de isolamento social nunca retornaram aos patamares dos meses de março e abril do ano anterior.

Dessa forma, os dados coletados demonstram que durante a pandemia, nos períodos em que as medidas sanitárias são mais restritivas, a estatística criminal de violências não-letais se descola da realidade por um problema de acesso aos serviços de segurança pública. O panorama apresentado acima demonstra que a pauta de violência contra crianças e adolescentes ainda é um desafio para as instituições de segurança pública, para os governos e para a sociedade como um todo. Para os próximos anos, o desafio, além de enfrentar a própria violência, mapear os crimes, notificá-los e registrá-los, é a consolidação de políticas públicas que deem conta de proteger nossas crianças e adolescentes das mais diversas formas de violência no Brasil. O fortalecimento das redes de apoio, sejam as escolas, Conselhos Tutelares, serviços de assistência, entre outros, é de extrema urgência para que as denúncias cheguem nas instituições e as medidas possam ser tomadas.

Sofia Reinach é pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Amanda Lagreca é pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Betina Warmling Barros é pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutoranda em sociologia na USP (Universidade de São Paulo).

Samira Bueno é doutora em administração pública e governo pela FGV/EAESP (Fundação Getulio Vargas) e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Este conteúdo é parte da cobertura do evento “Violência e maus-tratos contra crianças e adolescentes - o papel da prevenção”, realizado pelo Nexo em parceria com a FJLES (Fundação José Luiz Egydio Setúbal), instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.

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