Onde o 4G não chega: os auxílios emergenciais em MG

Debate

Onde o 4G não chega: os auxílios emergenciais em MG
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Elder Gabrich


01 de abril de 2022

A pandemia revelou complexidades inerentes à implementação de políticas públicas: como criar soluções para atender públicos heterogêneos com necessidades tão diferentes?

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Muitas foram as razões para que as necessárias medidas de enfrentamento à pandemia de coronavírus atingissem com mais intensidade a população de baixa renda do Brasil, sendo a mais relevante delas o fato deste público exercer, em sua maioria, trabalhos informais. Estamos falando de cabeleireiros, vendedores ambulantes, empregados e empregadas domésticas que viram, de uma hora para a outra, todas as suas fontes e possibilidades de renda serem reduzidas para absolutamente nada. Também estamos falando de um público que, pelas expressivas dificuldades enfrentadas, dificilmente contribui com regimes de previdência, capazes de fornecer seguridade social em momentos de crise, cabendo à Política de Assistência Social garantir a estas famílias condições básicas de dignidade. Assim, as políticas de transferência de renda, traduzidas no pagamento de auxílios emergenciais, tornaram-se medidas basilares de redução de danos da pandemia de covid-19.

De maneira inédita na trajetória de implementação do SUAS (Sistema Único de Assistência Social do Brasil), diversos estados e até municípios brasileiros implementaram seus auxílios emergenciais, em complementação àquele pago pelo governo federal. Este foi o caso de Minas Gerais, que lançou, em outubro de 2020, o Programa Renda Minas, que concedeu três parcelas de benefício médio de R$ 117 para cerca de 950 mil famílias extremamente pobres do estado. Estas famílias possuem renda per capita mensal de até R$ 89. Já em 2021, o estado implantou o Auxílio Emergencial Mineiro, que atendeu mais de 1 milhão de famílias na mesma situação, com parcela única de R$ 600.

A implementação de um programa desta magnitude e abrangência exigiu amplas discussões sobre como fazer, de fato, o dinheiro chegar nas mãos de quem mais precisa de maneira simples e rápida. Neste momento, a inovação foi fundamental para garantir o êxito do programa. O Brasil possui um dos sistemas bancários mais modernos do planeta, o que permitiu que os clássicos modelos de pagamento de benefício por meio de cartões magnéticos dessem lugar ao crédito do benefício em contas bancárias digitais. Já o moroso processo de saque de benefício em caixas eletrônicos, definitivamente não recomendado em um momento de pandemia, cedeu espaço para a movimentação do auxílio emergencial via aplicativo de celular. Medidas como estas garantiram que milhares de famílias tivessem acesso ao valor de benefício eventual segundos após o seu pagamento.

Políticas de transferência de renda, traduzidas no pagamento de auxílios emergenciais, tornaram-se medidas basilares de redução de danos da pandemia de covid

Contudo, a execução dos programas de transferência de Minas Gerais lançaram luz em uma triste realidade: a marcante desigualdade de acesso à tecnologia entre as famílias de baixa renda brasileiras. Entre os beneficiários do Programa Renda Minas e do Auxílio Emergencial Mineiro, dezenas de milhares de pessoas pertenciam a povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, famílias residentes em áreas rurais, isoladas, de difícil acesso, locais onde carros não chegam, às vezes, nem energia elétrica, muito menos a internet banda larga e menos ainda o 4G. Também não podíamos esquecer do expressivo contingente de população em situação de rua: famílias que, apesar de viverem nos centros urbanos mais populosos e movimentados, estão completamente à margem da tão idealizada redução de fronteiras promovida pela inclusão digital, pessoas que demoraram semanas para entender o que fez o comércio inteiro fechar as portas e o mundo todo ficar em casa. Para estas pessoas, o “novo normal” revelou sua faceta mais desalentadora.

Situações como esta revelam complexidades inerentes à implementação de políticas públicas: como criar soluções para atender públicos heterogêneos com necessidades tão diferentes? Como implementar políticas capazes de atender, de fato, a necessidade do cidadão? As famílias em situação de extrema pobreza de Minas Gerais, apesar de possuírem as mesmas condições de renda, divergiam em uma série de outros aspectos e não poderiam ser tratadas como um grupo homogêneo. Se por um lado, a solução inovadora do pagamento digital trouxe benefícios para a maioria absoluta dos beneficiários, por outro, os mais vulneráveis dentre os vulneráveis poderiam ser justamente aqueles não atendidos pela política que objetivava os atender.

Resolver este complexo dilema passou por admitir as idiossincrasias do público alvo dos programas e entender que grupos heterogêneos exigem intervenções não simplistas. Se o método inovador de pagamento por contas digitais era positivo para muitas famílias, ele não deveria ser abandonado, entretanto, precisava ser combinado com meios alternativos de pagamento para famílias que não possuíam celular ou acesso à internet. Assim, após amplas discussões, diversas ideias consideradas e uma certa dose de apreensão, a solução foi encontrada: aqueles que possuíam acesso à internet poderiam movimentar o auxílio emergencial pelo smartphone, já os que não possuíam poderiam ir até agências bancárias ou Casas Lotéricas e sacar o valor direto no caixa, mediante apresentação de documento. Em ambos os casos, não era necessário receber nem apresentar nenhum cartão magnético específico. Assim, a solução encontrada para o pagamento dos auxílios emergenciais em Minas Gerais foi simplificada, mas jamais simplista.

É possível dizer que a experiência mineira de pagamento dos auxílios é uma síntese do processo de inovação no setor público: é necessário estar sempre atento à multiplicidade de soluções que a tecnologia nos permite implantar, mas sem perder de vista as reais necessidades dos mais diferentes cidadãos, que devem ser os protagonistas de qualquer decisão de política pública.

O serviço público inova ao modernizar processos e aperfeiçoar o atendimento do cidadão, porém, tendo como pressuposto as diferentes necessidades do público alvo. Inovar no serviço público é, de fato, fazer algo novo e melhor, mas sem deixar ninguém para trás.

Elder Gabrich é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental formado pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. É vencedor do Prêmio Espírito Público 2021: Eixo Assistência Social. Foi bicampeão do Prêmio Inova, promovido pelo Governo do Estado de Minas Gerais, que premia ideias inovadoras desenvolvidas por servidores públicos. Gerenciou os dois maiores programas sociais de Minas Gerais: Programa Renda Minas e Auxílio Emergencial Mineiro. Atualmente é Superintendente de Proteção Social Básica na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais.

Este conteúdo é parte da cobertura especial “a serviço do público”, que tem o apoio da república.org, um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.