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Denilson Bandeira, Eduardo Grin e Catarina Ianni Segatto
Autonomia municipal é a pedra angular para a cidade constituir o seu próprio governo, organizar serviços, elaborar suas leis e se autogerir
Existem 5.568 municípios no Brasil, o que não é trivial, considerando que os governos locais são dotados de autonomia garantida pela Constituição Federal em seu artigo 1º. Os municípios são entes jurídicos de direito público e titulares de obrigações que lhes conferem poderes para atender aos interesses da população local. Quase um terço dos atuais municípios foi criado a partir da década de 1980.
A autonomia municipal é a pedra angular para a cidade constituir o seu próprio governo, organizar serviços, elaborar suas leis e se autogerir, de acordo com o ordenamento jurídico nacional. Os municípios possuem capacidade de autogoverno e auto-organização (autonomia política), autolegislação e autoadministração (autonomia administrativa e autonomia financeira).
Inovações locais, quando assumidas como ações federais, podem melhorar serviços públicos
A autonomia política municipal compreende a eleição direta do prefeito e dos vereadores, a auto-organização por meio de suas Leis Orgânicas Municipais, a de legislar sobre questões de interesse local e nos demais temas de forma suplementar.
A autonomia administrativa permite regular e executar os serviços públicos de interesse local, promover ordenamento do território e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo, aprovar o Plano Plurianual, diretrizes orçamentárias e o orçamento anual. Os municípios possuem muitas competências comuns compartilhadas com os governos estadual e central, o que amplia a possibilidade de suas áreas de atuação sem a necessidade de autorização das esferas superiores de governo.
A autonomia financeira refere-se às faculdades tributárias para arrecadar impostos sobre imóveis urbanos, serviços e transmissão de bens imóveis. Contudo, as cidades não podem criar impostos próprios nem deixar de cobrar aqueles que a Constituição Federal definiu, mas podem instituir suas próprias taxas (por exemplo, para a obtenção de alvarás de funcionamento de estabelecimentos comerciais) e contribuições de melhoria (cobradas quando ocorre a valorização de imóveis a partir de obras públicas).
Após 1988, os municípios adquiriram um robusto status constitucional e um aumento significativo de responsabilidades. Os municípios passaram a ser os principais responsáveis pela provisão de políticas sociais universais como saúde, assistência social e educação, que foram descentralizados pelo governo federal. Este papel na implementação de políticas sociais e o aumento de suas receitas totais (ingressos próprios e as transferências intergovernamentais) veio acompanhado da relevância dos municípios como esfera de poder local na federação.
No entanto, ainda que as atribuições sejam as mesmas para todos os municípios, suas capacidades fiscal e de oferta de serviços públicos variam enormemente. Existem desigualdades entre as burocracias e estruturas administrativas municipais e na infraestrutura dos equipamentos públicos, o que afeta a oferta e a qualidade dos serviços públicos. Há muita disparidade de arrecadação própria por porte populacional e a dependência significativa que a maioria das cidades possui em relação às transferências intergovernamentais. A título de exemplo, as cidades com até 20 mil habitantes – que são 70% do total dos 5.568 municípios -, dependem fortemente de transferências intergovernamentais. Essa realidade afeta o exercício da autonomia municipal garantido constitucionalmente diante da baixa capacidade de geração de receitas próprias.
Nesse cenário, desde a segunda metade da década de 1990, o fortalecimento da coordenação nacional foi essencial para diminuir as assimetrias de capacidades estatais e do aparato burocrático entre os municípios. Exemplo disso é que algumas transferências intergovernamentais consideram essa desigualdade, como nas áreas de saúde e assistência social, ao exigirem que os municípios criem secretarias municipais, fundos para os quais são transferidos os recursos e conselhos que contam com participação social e fiscalizam o uso dos recursos públicos.
Contudo, apesar da atuação do governo federal na definição das regras de muitas políticas públicas implementadas localmente, o papel dos governos municipais não se limita a executá-las. Os municípios frequentemente analisam custos e benefícios para adotar ou rejeitar as novas legislações e políticas públicas nacionais. Municípios emulam, aprendem e mesmo competem com outros municípios, ainda que usualmente de forma predatória. Ademais, características próprias como atributos de competição política eleitoral, desenvolvimento econômico e participação em redes intermunicipais são fatores que importam para a explicar a adoção de políticas pelos municípios.
Desde a redemocratização na segunda metade da década de 1980, os municípios têm produzido muitas inovações de políticas públicas pensadas como soluções tipicamente locais, mas que têm sido copiadas por outras jurisdições gerando um aprendizado de experiências. A contribuição das inovações locais e a difusão vertical de políticas públicas também pode ser avaliada pela criação de programas federais inspirados nelas. O efeito desse processo foi reconhecer que inovações locais, quando assumidas como ações federais, podem melhorar a oferta e a cobertura de serviços públicos para todos os municípios. O governo federal valeu-se do êxito de iniciativas locais ao criar políticas públicas nacionais e induzir sua adoção e implementação municipal a partir da transferência de recursos para isso. Diversas políticas nacionais exemplificam esse processo de difusão vertical, como o Programa Bolsa Escola (anterior ao Programa Bolsa Família) e o mais recente Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
É esta posição e os desafios dos municípios no federalismo brasileiro que torna importante o conhecimento da sua realidade, sobretudo quando a população terá que escolher quem serão os novos governantes a partir de 2025.
Denilson Bandeira é professor associado de ciência política na Universidade de Brasília. Foi visiting scholar no Departamento de Governo da Universidade do Texas (EUA). É pesquisador do QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas para o Desenvolvimento Sustentável).
Eduardo Grin é cientista político e doutor em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas). Professor do Departamento de Gestão Pública da FGV/EAESP. Pesquisador e coordenador de relações institucionais do QualiGov.
Catarina Ianni Segatto é doutora em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP. Professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole.
Esse artigo de opinião faz parte da série “O papel dos municípios no federalismo brasileiro”, produzido por pesquisadores do QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), no âmbito das eleições municipais de 2024.
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