Debate
Rafael Rodrigues Viegas
Apesar de autonomia, sabe-se que muitas cidades enfrentam dificuldades para cumprir os requisitos da Lei de Acesso à Informação
A busca por maior transparência na gestão pública tem ganhado destaque no Brasil nos últimos anos, especialmente após a promulgação da Lei n° 12.527 em 2011, conhecida como LAI (Lei de Acesso à Informação), que visa garantir que os cidadãos possam facilmente acessar dados e decisões governamentais. No entanto, os municípios enfrentam desafios significativos para atender as demandas por transparência, particularmente os menores, que precisam equilibrar recursos limitados com necessidades crescentes.
De acordo com o arranjo federativo brasileiro definido pela Constituição de 1988, os municípios são fundamentais na provisão de serviços públicos, como saúde e educação, e desempenham um papel importante na promoção do bem-estar social. Não por menos, a Constituição de 1988 concedeu autonomia para elaborar suas próprias leis, eleger seus líderes e administrar recursos locais. Esta autonomia é importante para a implementação de políticas públicas, incluindo as relacionadas à transparência.
Capacidade estatal nos municípios brasileiros é um fator crítico para o sucesso das políticas de transparência
Entretanto, apesar dessa autonomia, sabe-se que muitos municípios enfrentam dificuldades para cumprir os requisitos da LAI. A falta de capacidade estatal e a baixa participação cidadã impedem que muitos consigam implementar medidas efetivas de transparência.
A capacidade estatal é um conceito central na administração pública e na ciência política, referindo-se à habilidade dos governos de efetivamente planejar e implementar políticas públicas. Este conceito abrange uma ampla gama de competências e recursos que são essenciais para a governança transparente. Para que os municípios possam implementar políticas de transparência, é necessário, portanto, que possuam certas capacidades estatais, tais como técnico-administrativas e político-relacionais.
O presente artigo é uma reflexão sobre capacidades estatais e desafios para a transparência dos municípios brasileiros. O texto tem origem nos resultados de pesquisas acadêmicas recentes que contaram com a participação do autor.
As capacidades técnico-administrativas são aquelas que se relacionam diretamente com a eficiência e a competência das instituições governamentais em executar suas atribuições básicas. A capacidade de administrar recursos financeiros de maneira eficiente e transparente é fundamental. Uma gestão fiscal eficiente, por exemplo, permite que os governos planejem, aloquem e utilizem recursos de forma a maximizar os benefícios para a população, garantindo ao mesmo tempo que os gastos públicos sejam realizados de maneira responsável e justificada.
A habilidade de planejar e implementar projetos de infraestrutura e desenvolvimento urbano é condição para o crescimento sustentável dos municípios. Isso abrange iniciativas, desde a construção e manutenção de estradas, importantes para a mobilidade e o desenvolvimento econômico, até a edificação de escolas e hospitais, que são pilares fundamentais para a educação e a saúde pública.
A competência para gerenciar esses projetos de maneira eficaz reflete diretamente na capacidade do governo de cumprir suas obrigações e na confiança que a população deposita nas instituições públicas. A infraestrutura adequada não só melhora a qualidade de vida dos cidadãos ao proporcionar serviços essenciais, mas também atrai investimentos, fomenta o crescimento econômico e gera empregos. Projetos de desenvolvimento urbano bem planejados ajudam a criar cidades mais seguras, organizadas e habitáveis, promovendo um ambiente urbano que favorece o bem-estar social e a inclusão. Além disso, uma infraestrutura permite que os municípios respondam melhor às emergências e se adaptem às mudanças, sejam elas econômicas, sociais ou ambientais, garantindo resiliência a longo prazo, inclusive os requisitos da LAI.
A formação e capacitação dos servidores públicos são elementos essenciais para o funcionamento adequado da administração pública. Servidores bem treinados e qualificados são mais capazes de executar políticas de maneira eficiente e de utilizar ferramentas de gestão e tecnologia da informação para promover a transparência e a prestação de contas. A implementação de sistemas de TI e gestão que facilitem o acesso a dados, a comunicação interna e a prestação de contas podem aumentar a eficiência operacional e permitir uma maior transparência na administração pública.
A atualização e capacitação contínua dos servidores públicos não apenas os prepara para lidar com os desafios atuais, mas também os capacita a antecipar e responder a futuros obstáculos. Programas de treinamento e desenvolvimento profissional são investimentos que resultam em uma força de trabalho mais competente e motivada. Além disso, a adoção de novas tecnologias pode revolucionar a maneira como os serviços são entregues aos cidadãos. Por exemplo, sistemas de gestão eletrônica de documentos podem agilizar processos, reduzir burocracias e minimizar erros humanos, enquanto plataformas de dados abertos permitem que a população acompanhe e participe ativamente da administração pública.
Adicionalmente, a integração de tecnologias de comunicação e informação facilita a colaboração entre diferentes departamentos e níveis de governo, promovendo uma abordagem mais coesa e eficiente na execução de políticas públicas. A transparência é amplificada quando dados e informações são facilmente acessíveis, permitindo um controle social mais eficaz e fortalecendo a confiança pública. Ferramentas digitais, como portais de transparência e aplicativos de prestação de contas, tornam as operações governamentais mais visíveis e compreensíveis para o cidadão comum, incentivando uma cultura de responsabilidade e ética na administração pública.
As capacidades político-relacionais referem-se à habilidade dos governos de interagir e cooperar com atores sociais, políticos e econômicos. Envolver a comunidade na tomada de decisões é fundamental para promover a transparência e a responsabilidade. Conselhos de políticas públicas e outras formas de participação cidadã permitem que os cidadãos fiscalizem e influenciem as ações governamentais, aumentando a confiança pública e a legitimidade das políticas.
A capacidade de coordenar ações e políticas entre diferentes níveis de governo (municipal, estadual e federal) é importante para enfrentar desafios complexos que transcendem as fronteiras administrativas. A colaboração entre diferentes esferas de governo pode aumentar a eficácia das políticas públicas e garantir que os recursos sejam utilizados de forma mais eficiente.
Além disso, a habilidade de formar parcerias com o setor privado e organizações não-governamentais pode ampliar significativamente a capacidade do governo de implementar projetos e serviços públicos. Essas parcerias podem trazer inovações, recursos adicionais e expertise que complementam as capacidades governamentais. Por exemplo, enquanto o governo pode fornecer o financiamento e a estrutura regulatória necessária, o setor privado pode contribuir com tecnologias avançadas, práticas eficientes e conhecimentos especializados em áreas como construção, saúde e educação. As organizações não governamentais, por sua vez, muitas vezes têm uma conexão mais próxima com as comunidades locais e podem ajudar a garantir que as políticas públicas atendam realmente às necessidades das populações mais vulneráveis.
A liderança política é fundamental, portanto, para a mobilização de recursos e o direcionamento das políticas públicas. Governos com lideranças comprometidas com a transparência e a boa governança tendem a ser mais bem-sucedidos na implementação de políticas que promovem o desenvolvimento e o bem-estar social. Líderes que valorizam a transparência não apenas adotam práticas de governança aberta, mas também inspiram confiança entre os cidadãos, criando um ambiente onde a prestação de contas é a regra. Essa confiança é importante para a construção de um apoio público amplo e para a eficácia das políticas implementadas.
Lideranças políticas comprometidas com a transparência e a boa governança são hábeis na construção de coalizões e parcerias estratégicas. Essas lideranças sabem como articular os interesses de diferentes partes interessadas e integrar esses interesses em políticas públicas coesas e bem direcionadas. Por meio de uma comunicação clara e de uma visão compartilhada, essas lideranças conseguem alinhar os objetivos do governo, do setor privado e das organizações da sociedade civil, garantindo que todos trabalhem em conjunto para alcançar resultados comuns.
Além disso, a capacidade de formar parcerias não só fortalece a execução de projetos específicos, mas também contribui para o desenvolvimento de uma governança resiliente. A colaboração entre diferentes setores pode levar à criação de soluções mais inovadoras e sustentáveis para desafios complexos, como a urbanização acelerada, as mudanças climáticas e a desigualdade social. Ao aproveitar os pontos fortes de cada setor, governos podem desenvolver políticas públicas que promovam o desenvolvimento que seja realmente inclusivo e sustentável.
As lideranças políticas comprometidas com a transparência e a boa governança não só melhoram a implementação de políticas públicas, mas também elevam os padrões éticos da administração pública, o que cria um ciclo onde a transparência gera confiança, a confiança facilita a cooperação e a cooperação leva a melhores resultados para toda a sociedade.
As capacidades estatais não são distribuídas de maneira uniforme entre os municípios brasileiros. Fatores como o tamanho da população, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita e a região geográfica influenciam significativamente a capacidade dos municípios de implementar políticas de transparência. Municípios maiores e mais ricos tendem a ter mais facilidade em adotar essas políticas, devido à maior disponibilidade de recursos financeiros e humanos.
Disparidades regionais também são evidentes. Municípios em regiões mais desenvolvidas geralmente apresentam melhores índices de transparência. Essas desigualdades refletem disparidades históricas e estruturais que ainda persistem no país, afetando a capacidade dos governos locais de implementar políticas eficazes de transparência.
A pandemia de covid-19 explicitou os graves problemas de gestão do governo federal. No caso dos municípios, impôs novas demandas sobre os governos locais, especialmente nas áreas de saúde, emprego e educação. Essas demandas aumentaram as dificuldades financeiras e administrativas dos municípios, intensificando a pressão por maior transparência e eficiência na gestão pública. A necessidade de respostas rápidas e eficazes às crises destacadas pela pandemia evidenciou ainda mais a importância da transparência na gestão pública.
Durante a pandemia, a população exigiu maior clareza e acesso às informações sobre o uso de recursos públicos, especialmente aqueles destinados ao combate à covid-19, o que incluiu dados sobre compras emergenciais, distribuição de vacinas e outras medidas de saúde pública. Como se sabe, a transparência nessas áreas é fundamental para garantir a confiança pública e a eficácia das respostas governamentais. No entanto, muitos municípios ainda estão longe de atender as expectativas de transparência e prestação de contas, evidenciando a necessidade de fortalecer as capacidades estatais para lidar com crises futuras.
A pandemia expôs as fragilidades das administrações municipais em termos de transparência. Em muitos casos, a falta de dados claros e acessíveis sobre a alocação de recursos gerou desconfiança e incertezas entre a população. O fornecimento de informações detalhadas sobre processos de aquisição, critérios de distribuição de vacinas e implementação de medidas de saúde pública é essencial para que os cidadãos compreendam e apoiem as ações do governo. Sem essa transparência, a eficácia das políticas públicas é comprometida, assim como a capacidade do governo de mobilizar a população em momentos críticos.
Para melhorar a transparência nos municípios brasileiros, portanto, é fundamental fortalecer tanto capacidades técnico-administrativas quanto político-relacionais. Isso pode ser alcançado através de investimentos em qualificação dos servidores públicos, melhorias na gestão fiscal e promoção de uma maior participação cidadã.
Programas de treinamento e capacitação continuada podem preparar os servidores públicos para implementar e gerenciar políticas de transparência. Ferramentas de planejamento e controle financeiro ajudam a prevenir desperdícios e aumentam a confiança da população na administração municipal.
Um exemplo claro da baixa participação cidadã é a escassez de Conselhos de Transparência. Apenas 1% dos municípios brasileiros contam com esses Conselhos. Os Conselhos de Transparência são importantes, pois envolvem a comunidade na fiscalização das ações governamentais, promovendo um controle social mais efetivo e garantindo que as políticas públicas atendam realmente as necessidades da população. Quando funcionam adequadamente, permitem que os cidadãos participem ativamente do processo decisório, ofereçam sugestões e fiscalizem a execução das políticas, o que não só aumenta a confiança da população no governo, mas também melhora a qualidade das políticas públicas, pois incorpora diferentes perspectivas e conhecimentos.
A capacidade estatal nos municípios brasileiros é um fator crítico para o sucesso das políticas de transparência. A gestão fiscal, a qualificação dos servidores públicos e a participação cidadã são elementos-chave que determinam a eficácia dessas políticas. Fortalecer essas capacidades é condição para garantir que os governos locais possam responder de forma eficaz às demandas da sociedade por maior transparência e responsabilidade.
Os municípios brasileiros precisam garantir que a transparência não seja apenas uma exigência legal, mas uma prática incorporada na cultura administrativa. Sozinhos, a maior parte deles terá muita dificuldade de implementar essa cultura. Portanto, para que a transparência não seja apenas uma exigência legal se requer um esforço contínuo e coordenado entre diferentes níveis de governo e articulação com a sociedade civil e o terceiro setor para desenvolver soluções inovadoras e sustentáveis que promovam a transparência e a boa governança na administração pública.
Rafael Rodrigues Viegas é doutor em Administração Pública e Governo pela FGV (Fundação Getulio Vargas), onde é professor no Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas em São Paulo. Pesquisador INCT QualiGov.
Esse artigo de opinião faz parte da série “O papel dos municípios no federalismo brasileiro”, produzido por pesquisadores do QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), no âmbito das eleições municipais de 2024.
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