Políticas públicas de mobilidade: pensando fora da caixa

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Políticas públicas de mobilidade: pensando fora da caixa
Foto: Reprodução/Transwolff/Facebook

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Ciro Biderman


23 de agosto de 2024

Questão que precisa ser enfrentada é como alterar a composição modal, reduzindo a participação dos meios individuais motorizados

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Ao contrário de outras políticas públicas, na mobilidade urbana há consenso: é preciso reduzir o uso de veículos individuais motorizados e aumentar o uso de transportes coletivos e modos ativos (caminhada e bicicleta). Essa mudança reduz congestionamento, emissões de gases do efeito estufa, sinistros e tem impacto distributivo, beneficiando os mais pobres. A descarbonização da frota, garantindo o uso de fontes energéticas não fósseis, também é consenso. No entanto, os municípios têm confundido descarbonização com eletrificação, que não são políticas idênticas.

A eletrificação, principalmente quando movida a termoelétricas, oferece apenas uma redução parcial de emissões. Além disso, a própria produção de baterias de lítio, que é o padrão do mercado, gera emissões consideráveis. No Brasil, onde há uma ampla oferta de etanol, a opção por híbridos flex seria mais lógica, mas isso tem sido menos enfatizado do que os veículos elétricos. Não está claro porque acabamos optando por uma solução única que é bastante discutível. Assim, políticas de apoio ao carro elétrico que incluem exceção ao rodízio de veículos, vagas gratuitas e até mesmo recarga gratuita não fazem o menor sentido.

Precisamos de prefeitos dispostos a realizar mudanças impopulares, mas que de fato melhorem a vida das pessoas no médio prazo

Outro erro comum é a promoção de políticas como a tarifa zero. Embora pareça alinhada ao consenso de reduzir o uso de automóveis, também desincentiva modos ativos e sobrecarrega orçamentos municipais, comprometendo a qualidade do serviço público de transporte. Prefeitos que defendem a tarifa zero como política distributiva ignoram que ela subsidia todos os usuários, independentemente da renda, sem foco necessário.

Uma política mais efetiva seria cobrar pelas externalidades negativas dos automóveis, ou seja, seu efeito sobre o acréscimo de tempo decorrente dos congestionamentos, a emissão de CO2 e os sinistros de trânsito. A implementação de uma taxa por congestionamento investindo as receitas no transporte público, como em Londres, poderia transferir usuários do carro para o transporte público e a bicicleta. Na capital inglesa a redução do uso do automóvel foi de 10%, aumentando o uso do transporte público em 9% e da bicicleta em 1%.

A grande questão que precisa ser enfrentada é como alterar a composição modal, reduzindo a participação dos meios individuais motorizados. Sabemos que os usuários do carro são mais sensíveis à qualidade do transporte público do que ao seu preço. Para mudar a qualidade precisamos investir em corredores de ônibus, o que implica em retirar espaço dos automóveis. A qualidade do veículo é um fator relevante, claro, mas não se compara com a frequência de viagens. Se garantirmos uma alta frequência, os tempos de deslocamento e de espera caem atraindo usuários do automóvel.

Além disso, os prefeitos deveriam focar na governança da bilhetagem eletrônica, que hoje, na grande maioria de municípios, é gerenciada pelos operadores de ônibus, dificultando a inovação. Ao controlar a bilhetagem, os municípios poderiam melhorar o planejamento e controle da operação, atraindo mais usuários ao melhorar a qualidade do serviço. Adicionalmente, um modelo de “bilhetagem aberta” permitiria, além de inovação, a entrada de qualquer meio de pagamento no sistema, o que abriria a possibilidade de se implementar o que temos denominado de MaaS (Mobilidade como Serviço, pelo seu acrônimo em inglês).

A mobilidade urbana mudou drasticamente com os aplicativos de transporte, que trouxeram flexibilidade e otimização. A integração desses modos com o transporte público, especialmente em áreas menos densas, conhecidas como a “última milha”, pode ser uma solução eficiente e de baixo custo. Contudo, isso requer inovação aberta na bilhetagem e melhorias na infraestrutura das estações para acomodar a integração de diferentes modos de transporte.

Para municípios pequenos, que muitas vezes não enfrentam congestionamento significativo e, portanto, não faz sentido taxas de congestionamento ou grandes obras de infraestrutura, ainda se pode pensar “fora da caixa”. Nesses casos, o uso de um sistema de MaaS, incluindo integração tarifária e física, pode ser mais eficaz. A exploração da ociosidade no transporte escolar para transporte público em horários alternados é uma oportunidade viável que requer planejamento e controle rigorosos.

No geral, as políticas públicas de mobilidade precisam ser baseadas em evidências e planejamento de longo prazo. Estratégias como tarifa zero e eletrificação sem reflexão profunda são ineficazes e custosas. Prefeitos corajosos, dispostos a desafiar o status quo e a implementar mudanças significativas, são raros, mas essenciais para o desenvolvimento sustentável das cidades.

O problema é que tanto a eletrificação da frota como a tarifa zero são políticas que não mexem no status quo, agradam ao setor automobilístico e aos operadores de ônibus. A população consegue ver seu resultado no curto prazo: um veículo rodando sem fazer ruído e sem emissões ou o transporte gratuito são sentidos imediatamente pela população. Mudanças na governança da bilhetagem dificilmente seriam notadas e seus resultados demoram anos para serem sentidos. Realizar uma obra de corredor exige um esforço enorme do governo e leva anos para terminar. Durante o período de obras, apenas atrapalha a vida do cidadão.

Como então adotar políticas públicas que façam sentido? Precisaríamos de um prefeito disposto a realizar uma mudança impopular, mas que de fato melhore a vida das pessoas no médio prazo. No passado alguns prefeitos se arriscaram a implementar o rodízio de veículos, reduzir a velocidade das vias, construir calçadões. Políticas públicas urbanas acertadas, ainda que extremamente impopulares. Esperamos que essa nova leva de prefeitos eleitos ou reeleitos traga um grupo disposto a melhorar a qualidade de vida da população de maneira permanente, mesmo que isso signifique arriscar sua popularidade no curto-prazo.

Ciro Biderman é professor do programa de mestrado e doutorado em Administração Pública e Governo da FGV (Fundação Getulio Vargas) e Diretor do FGV Cidades.

Esse artigo de opinião faz parte da série “O papel dos municípios no federalismo brasileiro”, produzido por pesquisadores do QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), no âmbito das eleições municipais de 2024. 

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