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Reza a lenda que Sigmund Freud disse que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Provavelmente não foi ele o autor da frase (atribuída mais comumente a Baruch Spinoza , ainda que eu não tenha encontrado a fonte), mas esse é um bom ponto de partida para esta coluna.
Em agosto, mídia e redes sociais no Brasil se viram inundadas por um debate inusitado, em pleno século 21, sobre se “a psicanálise é uma ciência”. A ressurgência do debate tinha um motivo: o lançamento do livro“ Que Bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério ”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, que coloca a disciplina em um rol de pseudociências compartilhado com astrologia, paranormalidade e discos voadores, o que deixou bastante gente incomodada .
Seguindo uma longa tradição de chegar atrasada a debates, esta coluna se absteve de pronunciar-se enquanto a polêmica rugia, em grande parte por eu nem ter lido o livro inteiro nem entender do assunto. Mas também porque quando Pedro e Paulo discutem sobre qualquer tema no Twitter – ops, X – , temos mais a aprender sobre Pedro e Paulo, e sobre debates em redes sociais, do que sobre o tema que está sendo discutido.
Boa parte das controvérsias que acabam vingando na esfera pública são o que a filosofia chama de “ disputas verbais ” – polêmicas que giram não em torno dos fatos, mas das palavras usadas para descrevê-los. Quando se discute se Bolsonaro é fascista, ou se Lula é comunista, a divergência não costuma ser sobre Bolsonaro ou Lula, cujas posições políticas são conhecidas, e sim sobre os conceitos – esses sim bastante volúveis – de “fascismo” ou “comunismo”.
Não é por acaso, aliás, que tanta saliva seja gasta com esses conceitos. Como cada um os define como quiser, isso permite que ambos os lados do debate tenham razão – dentro da sua interpretação –, se sintam com razão, e pisoteiem verbalmente os proponentes do outro lado para os aplausos do seu próprio campo. O que muitos diriam ser o principal motor de qualquer discussão nas redes sociais, e costuma ser bem explorado por seus algoritmos.
Não surpreendentemente, o debate do mês passado está colocado nos mesmos termos imprecisos. O que exatamente se quer dizer com “psicanálise”? Um conjunto de teorias que tenta descrever o funcionamento da mente humana? Uma prática terapêutica no estilo clássico proposto por Freud? Ou suas inúmeras adaptações mais pé-no-chão – comumente referidas como “ psicoterapias de orientação psicodinâmica ”?
Boa parte das controvérsias que vingam na esfera pública são o que a filosofia chama de “disputas verbais” – polêmicas que giram não em torno dos fatos, mas das palavras usadas para descrevê-los
Ainda mais vaga é a segunda parte da pergunta: o que diabos quer dizer “ciência”? O problema anima filósofos da ciência há décadas, oscilando entre tentativas de demarcar objetivamente o conceito e recusas em aceitar uma definição única . Eu mesmo não saberia articular uma definição em poucas palavras – e curiosamente, o livro de Pasternak e Orsi tampouco parece fazê-lo. Mas tendo a ver a objetividade científica como um ideal salutar do qual nos aproximamos de forma imperfeita, o que faz com que “X é uma ciência?” não seja uma pergunta de sim ou não, e admita uma série de tons de cinza.
Se tomarmos “psicanálise” como uma tentativa teórica de explicar a mente humana, ela provavelmente seria reprovada em boa parte das definições – ainda que não em todas . A psicanálise como a conhecemos hoje é uma amálgama de teorias construídas umas sobre as outras, com grau de consenso bastante variável, baseadas em descrições narrativas de processos mentais pouco afeitas à verificação sistemática. Com isso, sua validação empírica ao longo dos anos foi primariamente construída através da experiência clínica individual – e inevitavelmente enviesada – de seus próprios praticantes.
Dito isso, o fato de pontuar razoavelmente baixo na minha escala particular de “ciência” – bem como na de alguns psicanalistas – não faz automaticamente de algo uma bobagem. Como leitor e autor de ficção, não me faz falta convencer alguém que “literatura é ciência” para argumentar que aprendi bastante do que eu sei sobre a vida com ela. Da mesma forma, diversos campos do conhecimento incluídos no rol das ciências por tradição, como a filosofia ou a matemática , também seriam reprovadas em definições baseadas na falseabilidade empírica .
Mais do que isso, a ausência de verificação sistemática nos moldes científicos tradicionais não exclui que se ganhe algo com a experiência: a maior parte de nós aprendeu a se relacionar com pessoas ou criar filhos na base da tentativa e erro, e isso frequentemente vale mais do que conhecer a evidência científica sobre esses temas – que, diga-se de passagem, também existe . E por menos que eu entenda de psicanálise, é difícil pensar que milhares de psicanalistas – incluindo muita gente inteligente, junto com um bocado de malucos – tenham dedicado décadas a escutar pessoas falando sobre si mesmas sem aprender algo de útil.
Cabe ressaltar, porém, que “a psicanálise é útil para alguma coisa” é uma pergunta bem diferente de “a psicanálise é uma ciência” – e que as respostas a ambas também podem ser diferentes. Ter um companheiro e uma rede de suporte social , por exemplo, estão entre os fatores protetores mais fortes contra depressão. Esse fato não significa que o amor ou a amizade sejam ciências – o que não impede que seus efeitos sejam estudados pelo método científico.
O que leva à segunda pergunta – menos teórica e mais prática – de “a psicanálise funciona?”, que é para onde boa parte do debate público acabou derivando, talvez porque ela seja mais relevante do que a primeira. Mesmo essa pergunta, porém, ainda é aberta a disputas verbais – já que é preciso definir o que se quer dizer “psicanálise”, para que ela deveria funcionar, e como deveríamos medir isso.
Alguns psicanalistas costumam argumentar que os resultados subjetivos da psicanálise não podem ser adequadamente medidos , o que parece um jeito conveniente de se tornar infalsificável. Mas isso não impede que uma série de estudos tenham tentado medir efeitos de terapias de orientação psicodinâmica em desfechos como depressão , ansiedade e transtornos de personalidade . Curiosamente, foram os próprios psicanalistas que foram atrás desses estudos – ou da reputação das revistas em que saíram – para validar a psicanálise como “ciência”. Em contrapartida, seus críticos apontam para limitações metodológicas dos trabalhos para dizer que eles não valem nada – o que também é um expediente comum para ignorar evidências .
Nesse ponto, a controvérsia deixa de ser sobre terminologia e passa a ser sobre o que conta como evidência, uma divergência mais concreta – e uma sobre a qual eu não tenho a menor condição de opinar, já que envolveria gastar muito mais horas do que tenho para escrever esta coluna. Na ausência desse tempo – um problema compartilhado pela maioria dos envolvidos no debate, aliás –, eu costumo delegar esse tipo de pergunta a instituições como a colaboração Cochrane , que diz que estudos sobre terapias psicodinâmicas breves sugerem eficácia para redução de sintomas depressivos e ansiosos , ainda que as conclusões sejam baseadas em poucos estudos e haja uma imprecisão grande nas estimativas de longo prazo. Não é tão bom quanto estudar o assunto, mas vou me satisfazer com a opinião dos universitários.
Mesmo assim, o fato de ser melhor do que nada ainda não é o suficiente para que práticas baseadas na psicanálise sejam incluídas no sistema de saúde – que é para onde boa parte dos argumentos de ambos os lados acaba escoando (e talvez seja a causa motriz de Pasternak e Orsi para escrever o livro). Ainda é preciso que a intervenção seja tão boa ou melhor do que as alternativas, e que seja custo-efetiva o suficiente para merecer o investimento. Essa questão de economia de saúde é ainda mais complicada, e vou deixá-la para os gestores de saúde, porque não saberia sequer onde começar a procurar uma resposta – o que não quer dizer que não haja uma.
Dito isso, vale notar que mesmo essa pergunta envolve decisões políticas que não são estritamente científicas, como a definição de saúde mental e as melhores formas de medi-la. Desprezar indicadores objetivos nesse campo costuma ser um atalho diabólico que leva ao caos relativista e ao desperdício de recursos. Por outro lado, a maior parte de nós aceita que governos financiem música, cinema, carnaval ou esporte com base na impressão subjetiva de que são importantes – já que como diz uma frase célebre, “ nem tudo que pode ser contado conta, e nem tudo que conta pode ser contado ”. E nesse espectro de equilíbrio entre a evidência mensurável e a percepção subjetiva, existe espaço para divergências legítimas que vão além das disputas verbais, e envolvem diferenças de valores e visões de mundo.
Como vocês já devem ter notado, não tenho a menor intenção de resolver o debate – ou mesmo de ter uma opinião definitiva sobre o assunto. Mas estou fazendo um esforço para encontrar os pontos de discordância, porque me parece a função que o jornalismo deveria fazer: a de pegar a disputa estridente das redes sociais e tentar trazê-la pro mundo dos adultos. Infelizmente, o que levo de maior aprendizado dessa história é que ainda não sabemos fazer isso tão bem.
Ao enxergar a polêmica, a reação natural da maior parte dos veículos de mídia foi fazer debates de “ sim ou não ”, ou de dar voz a críticos e a defesas dos autores . O Fla-Flu, afinal, gera atenção na mídia como o faz nas redes sociais, e ajudou a catapultar o livro para a lista dos mais vendidos . Mas com algumas honrosas exceções , vi menos esforço do que gostaria para tentar entender sobre o que exatamente as pessoas estavam discordando.
Num exemplo particularmente bisonho de clickbait, a Folha exibiu a chamada “ Natália Pasternak rebate misoginia no meio científico ”, tornando manchete o curioso argumento dos autores de que o fato das críticas terem se direcionado a Pasternak e “invisibilizado seu coautor” eram decorrentes do “machismo e da misoginia nacionais”. Cabe a reflexão de que, se a invisibilizada fosse a autora mulher, isso também poderia ser tomado como evidência de machismo, o que torna o argumento infalsificável – ou, nas palavras dos próprios autores, pseudocientífico. E ainda que a explicação de que Pasternak tenha muito mais visibilidade na mídia pareça mais parcimoniosa, apelar ao preconceito para rebater críticas parece ter virado uma tendência recorrente na imprensa , e uma ótima estratégia para chamar a atenção.
É óbvio que isso vai seguir acontecendo nas redes sociais, para as quais “psicanálise é ciência” é mais uma oportunidade de demonstrar pertencimento a determinados grupos usando como mote assuntos sobre os quais não entendemos direito, como antimaláricos, urnas eletrônicas, mudanças climáticas ou taxas de juros. Esse parece um bug de como nos relacionamos em público, que não parece ter soluções algorítmicas óbvias . Mas me parece que a mídia tradicional, pelo menos, poderia cumprir melhor o papel de qualificar o debate.
Simplesmente celebrar que o livro “tenha colocado a ciência em pauta”, como os autores têm feito , não me parece suficiente. É preciso usar a oportunidade para mostrar a diversidade de posições que ela comporta – algumas com mais méritos que outras – e clarear onde estão as divergências reais, em meio à selva das disputas verbais, para tentar construir pontes que as superem. Isso pode não gerar tantos cliques quanto apostar no conflito, mas talvez ajude a tornar a civilização um pouco mais viável.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
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