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Luiz Augusto Campos

Diversidade: usos e abusos

27 de novembro de 2023

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Temos que tomar cuidado para não deixar essa noção genérica de diversidade escamotear os reais problemas que assolam os grupos minorizados: desigualdade e discriminação

Em 1976, o curso de medicina da Universidade da Califórnia recusou o engenheiro civil e ex-veterano de guerra Alan Bakke como aluno. Como os processos seletivos universitários estadunidenses são complexos e pouco transparentes, não sabemos exatamente as razões da recusa, mas Bakke já tinha um diploma de graduação, estava numa idade considerada avançada pela universidade e não havia tido um desempenho estonteante nos testes valorizados à época. Ainda assim, alguns estudantes negros e latinos com desempenho inferior ao dele foram selecionados, levando Bakke a acusar judicialmente a universidade de discriminá-lo por ser um estudante branco.

O caso foi parar na Suprema Corte dos Estados Unidos, gerando inúmeros protestos públicos pró e contra Bakke – ou contra e pró ações afirmativas raciais. Com a corte dividida, coube ao seu presidente, o juiz Lewis Powell, produzir o voto que formou maioria e mudou a história da ação afirmativa nos EUA e no mundo. De um lado, ele deu ganho de causa a Bakke e considerou discriminatório o sistema de cotas raciais da Universidade da Califórnia. Do outro lado, porém, ele admitiu que as universidades considerassem a raça dos candidatos nas suas seleções como um dentre vários critérios, de modo a promover a diversidade do seu alunado. Em resumo, a Suprema Corte proibiu o emprego de cotas raciais como política contra a discriminação, mas permitiu que a raça fosse levada em conta como forma de promover a diversidade do alunato.

Apesar de pontual, essa decisão marcou a história das políticas de ação afirmativa no mundo. Originada na luta por direitos civis de grupos discriminados na Índia (dalits) e nos EUA (negros), a ação afirmativa passava então a ser vista como uma política de reconhecimento da diversidade cultural entre os grupos. A partir disso, só cresceu o número de universidades, multinacionais e órgãos governamentais comprometidos com o valor da diversidade. Os políticos progressistas americanos passaram a incorporar cada vez mais em seu discurso o ideal de um país diverso culturalmente e tolerante com as diferenças, o que deslocava para o segundo plano as demandas por redução da desigualdade e a luta contra as diferentes discriminações que marcam o país. Essa nova esquerda liberal e multiculturalista exportou esses ideais para diferentes organismos internacionais e países, sob a bandeira de que a promoção da diversidade seria um fim superior à busca por igualdade, ideal associado ao socialismo e à social-democracia então em crise.

Desde então, a palavra “diversidade” se tornou ambígua. Num sentido mais substancial, ela denota a necessidade de pluralizar determinados espaços com grupos que são vítimas de desigualdades e discriminações. Mas num sentido mais genérico, ligado fortemente à história americana, “diversidade” se opõe às bandeiras por igualdade e antidiscriminatórias em prol da promoção das diferenças, independente de quais sejam.

Pode parecer a mesma coisa, mas não é. Depois da decisão no caso Bakke, os Estados Unidos só multiplicaram os grupos beneficiários das suas ações afirmativas. Para além de negros, latinos, indígenas e mulheres, grupos histórica e sistematicamente discriminados pelo sistema educacional, elas passaram a incluir asiáticos, mesmo estes tendo um desempenho médio melhor,até mesmo do que os brancos, nos critérios avaliados pelas universidades. As demandas por diversidade nesse sentido singular solaparam, na década de 1980, o compromisso igualitário das demandas por direitos civis e sociais que imperaram no campo progressista entre as décadas de 1930 e 1970.

Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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