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Giovana Xavier

E quando a mamãe vira torcedora?

09 de julho de 2018

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As formas pelas quais as crianças constroem seus lugares de fala deveriam ser conteúdos ensinados em todas as aulas. Com a Copa do Mundo, essa certeza aumentou

Em entrevista recente à Casa TPM 2018 , a jornalista me perguntou: “Como podemos contribuir para mudar o mundo?” Em primeiro ato, a amplitude da questão gerou em mim certo incômodo. Na verdade, pânico de me tornar a mensageira de vazios como “respeitar o outro”, “ser mais tolerante”, “reconhecer que somos todos humanos” etc. Recusando essas abstrações, respondi: “a chave está com as crianças. Precisamos ouvi-las mais”. Formulei a ideia confiante, pensando em todas as vezes que meu filho, da forma mais simples, coloca limites nas situações que o incomodam: “quero ir embora”, “não gostei”, “isso é chato”, “não foi legal”. Ou, quando espontaneamente, grita “bravo”, bate palmas para artistas de rua, identifica a favela da Maré da janela do ônibus, pede para guardar um pedaço de bolo do aniversário para o motorista do transporte escolar, dá bom dia para pessoas em situação de rua.

As formas pelas quais as crianças constroem seus lugares de fala deveriam ser conteúdos ensinados em todas as aulas. Com a Copa do Mundo, essa certeza aumentou. Historiadora, devidamente formada para criticar símbolos como hinos, bandeiras, brasões e outras alegorias do nacional, vi-me confrontada com três camisas da seleção brasileira estendidas em cima da cama do meu namorado. “Uma para mim, outra para você, outra para o Peri”. Não foi a primeira vez na vida que tive uma camisa do Brasil ou que assisti aos jogos. Mas foi a primeiríssima, em muitos anos, que me percebi – nua e crua – como “torcedora”.

Esse lugar, considerando o caos em que o Brasil se encontra, me causou inicialmente muito desconforto. Vozes internas ecoavam: “o Brasil é o país que mais mata pessoas trans”, “no Brasil, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado”, “0,4% das professoras doutoras na pós-graduação são pretas”, “Mãe, ele não viu que eu estava de uniforme”. Em meio a essa coisa toda, comecei a perceber que eu estava me escondendo como a mamãe torcedora. No começo, usei a alegria e a adesão de meu filho à Copa do Mundo como justificativa do meu lugar de torcedora. Percebi isso quando postei uma foto da família uniformizada. E para ficar bem na fita escrevi na legenda: “O que não fazemos por amor”. Senti-me péssima com essa mensagem. Justo eu, crítica voraz das obviedades, cumprindo o protocolo do que se espera ouvir? Francamente. Ainda bem que nossos pensamentos podem ser editados, não é mesmo “Tradicional torcida brasileira”?

A mamãe @pretadotora aprendeu com Peri que é preciso virar o jogo. Graças ao fato de ouvi-lo, passou a se perguntar: e se, em vez de sobreposições, as verdades duras fossem cruzadas ao direito de torcer em família? Ela lembrou que o filhote foi fundamental para a grande virada. Olhando sua performance durante a Copa, ela entendeu que o jogo era o que é: apenas um jogo. Foi essa leitura de mundo que tanto a encanta, que permitiu  que o menino praticasse a liberdade. Danado, ele assistiu às partidas brincando com seus jogos eletrônicos, correndo pela casa, mudando a televisão de canal, pedindo pão de queijo. Ou seja, vivendo a vida. De boas.

A mamãe curtiu tanto vestir a camisa da brasilidade não somente por ele, mas, principalmente por si própria. Afinal, ela se dedica todos dias a construir um país mais democrático, em que as humanidades sejam integralmente respeitadas. Sair pelas ruas ou deitar no sofá vestindo verde e amarelo a fez livre. Livre para criar um sentido de ser brasileira que passa por valorizar a alegria, a leveza, a família e o amor ao esporte como direitos que nos tornam pessoas melhores, frente a tantas violências.

Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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