Coluna
Luciana Brito
E se fossem pretos? A soberania nacional e o privilégio racial
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Todas as promessas de violência civil e de Estado feitas pelo ex-presidente foram cumpridas, inclusive aquelas que desembocaram nas cenas estarrecedoras de domingo (8). Não foi surpresa: logo depois da invasão do Capitólio por terroristas supremacistas nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, o então presidente brasileiro da época de imediato avisou que algo ainda pior aconteceria no Brasil se ele não fosse eleito. Roberto Jefferson também sinalizou o que aconteceria ao usar e reforçar a maior característica do bolsonarismo, que é a extrema violência, quando os carros da polícia federal pararam na sua porta. A despeito de serem recebidos com granadas, neste caso, tudo foi resolvido com conversas, sorrisos e tapinhas nas costas.
Os terroristas brasileiros não tomaram os palácios do governo de assalto, como aconteceu no Capitólio. Marcharam lentamente, pelo menos, desde o dia que saíram derrotados das eleições. A sensação de impunidade, baseado no seu status racial e de classe, insuflou um inconformismo violento, e eis aqui um dos elementos mais chocantes das cenas do ataque à Brasília: até agora, nenhuma bala perdida e nenhuma resposta dura da polícia ao fato de serem “recebidos com violência”, justificativas conhecidas utilizadas pelos agentes da segurança quando invadem as periferias.
A pergunta que fica no ar e cuja imprensa evitou durante toda a sua cobertura foi: e se fossem pretos?
Enquanto a cobertura da imprensa, com muito cuidado e aos poucos empregava o termo terroristas, que pouco a pouco foi substituindo o termo“manifestantes”, pessoas negras nas redes sociais e nas conversas que trocavam entre si foram ficando cada mais ora confusas, ora chocadas com o que constataram: ficou nítido que vivemos num estado de coisas nas quais vivemos, num mesmo país, com duas polícias. Uma é aquela que marcha ao lado dos terroristas, quase que conduzindo-os ao seu intuito final Aquela que é inerte à violência da horda destruidora da democracia e do patrimônio público. Uma polícia tão segura para o cidadão branco que, ainda que eles estejam cometendo crimes graves, ela preserva sua integridade física pois tem noção da desproporção da sua força (por portarem armas de fogo). Em qualquer blitz de Salvador podemos ver mais armas pesadas do que em Brasília ontem, embora seu uso fosse facilmente justificado.
A outra polícia é aquela que chega atirando, seja na troca de tiros, seja, como em boa parte dos casos, no silêncio da madrugada dos bairros populares, enquanto trabalhadoras e trabalhadores dormem. É aquela que vê o cidadão negro como potencial criminoso, que enxerga guarda-chuva como fuzil, pinho sol como artefado explosivo e o questionamento ao excesso da violência é enquadrado como resistência à prisão ou desacato. O policial, para pessoas negras, é aquele agente público a quem aprendemos a temer desde criança, a ele não se olha nos olhos, é “sim senhor, não senhor”. Assim, para a maioria da população brasileira, negra, que assistiu à cobertura dos atos terroristas de ontem, cabia-nos refletir sobre o que nós somos neste país. Que tipo de cidadania é esta que vivemos?
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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