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Primeiro foi o fogo, dez dias atrás, transformando milhões de anos de memórias em cinzas, pintando de vermelho o céu do Rio de Janeiro e iluminando nossa incapacidade de cuidar dos maiores tesouros acumulados em dois séculos de história da nação Brasil. Apagado o incêndio do Museu Nacional, não se viu nenhuma autocrítica, nenhum aprendizado, só uma amarga troca de acusações – a direita culpando a esquerda, a esquerda culpando a direita, o governo culpando o povo, o povo querendo ver o governo queimar.
Depois, no dia seguinte mesmo, vieram as lágrimas, de maneira menos espetaculosa, mas nem por isso menos terrível. O Ministério da Educação divulgou os resultados do Ideb , o Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico, e ficou impossível não notar que o país que queima seu passado nem por isso cuida do seu futuro. Dos 27 estados brasileiros, 27 foram reprovados – uns mais, outros menos, nenhum cumpriu suas metas de melhora do ensino médio. O Brasil continua sendo um país onde, de cada 20 jovens que terminam a escola, 19 têm domínio insuficiente de matemática (em português nos saímos só um tiquinho melhor). Continua sendo um país que desperdiça todos os dias o maior potencial que existe: gente. Segue estagnado há uma década, sem melhorar sua educação, apesar de todo mundo, de todas as tendências políticas, de todos os setores, concordarem que não há futuro sem educação.
Aí, por fim, semana passada, veio o sangue, na forma de uma longa lâmina furando a pele e fatiando as tripas de um candidato a presidente, justamente aquele que defende o justiçamento com as próprias mãos como forma de solucionar problemas, na marra. Um crime a mais num país tão desesperador e sem diálogo possível que faz a violência parecer o único caminho – e o próprio candidato só existe porque explora esse desespero. Dos intestinos rompidos, o Brasil viu escoar frustração, ódio, desconfiança. E paranoia. Logo após o atentado , o debate público foi tomado por teorias conspiratórias. Enquanto o candidato passava por uma cirurgia de emergência, mais da metade dos comentários nas redes sociais eram fantasias alucinógenas. De novo, acusações para todos os lados – foi a esquerda que tentou matá-lo, foi a Globo que produziu, foi o PSDB, o PT, foram os Estados Unidos, foi a própria campanha do agredido. E um monte de gente razoável saiu reproduzindo desvarios não muito diferentes daqueles proferidos pelo agressor (que acreditava que o candidato o perseguia a serviço da maçonaria).
Foi sob o impacto dessa avalanche de tragédias consecutivas que o Brasil celebrou o 196º aniversário de sua existência como nação, no dia 7 de setembro, um dia após a tentativa de assassinato. Para mim, que carrego um sobrenome que praticamente não existe mais no mundo, exterminado que foi por facínoras intolerantes alimentados pela paranoia sete décadas atrás, ficou difícil manter-me sereno. Perdi o sono. Talvez tenha ficado eu mesmo um pouco paranoico também – o fogo, as lágrimas e o sangue passaram a parecer sinais de uma tragédia inevitável. Eu lembrava das ruínas do Museu Nacional e via nelas o Reichstag. Passei o feriado angustiado, com o frio na barriga de quem se precipita num abismo, tarde demais para reverter o desmoronamento de um país. “Fracassamos”, eu pensava, e tinha vontade de chorar ao olhar para os meus filhos.
Fico pensando se fui só eu que encarei o abismo nesses dias terríveis. Minha sensação é que não: muita gente enxergou o tamanho do risco que corremos e parou para pensar sobre o que nos une, o que nos define, os interesses que compartilhamos. Vejo indício disso na primeira pesquisa eleitoral divulgada depois disso tudo, que registrou um aumento na rejeição à intolerância, contra todas as expectativas, depois da imensa exposição do candidato atacado. Será que o Brasil começou a se cansar de tanto ódio e desconfiança?
Denis R. Burgiermané jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.
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