Do interior de seu palácio de mármore, de cima de um pedestal que o coloca bem distante da realidade dos comuns mortais, o desembargador Ivan Sartori, um dos mais influentes magistrados paulistas e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, contribuiu nos últimos dias para que as pessoas conhecessem um pouco mais sobre como o poder judiciário paulista enxerga o mundo.
Na terça-feira da semana passada, Sartori presidiu a sessão que anulou a condenação de 74 policiais militares acusados pelo Massacre do Carandiru, um dos mais tristes eventos da história brasileira, em que 111 presos foram assassinados por homens do Batalhão de Choque que entraram na Casa de Detenção em outubro de 1992. Sartori pediu a absolvição dos réus que haviam sido condenados pelo Júri depois de 20 anos de procrastinação. “Não houve massacre do Carandiru, mas sim legítima defesa”, escreveu, alegando que os policiais mataram 111 pessoas para não serem mortos.
Diante da esperada repercussão, o desembargador voltou à carga contra os críticos que discutiram problemas técnicos da decisão e as idiossincrasias dos desembargadores do Tribunal. Em sua página pessoal do Facebook, ele escreveu: “Diante da cobertura tendenciosa da imprensa sobre o caso Carandiru eu fico me perguntando se não há dinheiro do crime organizado financiando parte dela, assim como boa parte das autodenominadas organizações de direitos humanos”.
Nascido um ano depois do Massacre, em agosto de 1993, a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) é a grande novidade da cena criminal brasileira nos dias de hoje. A facção, que surgiu nas prisões de São Paulo, passou a organizar o tráfico de drogas nas ruas e hoje já disputa mercados em praticamente todos os estados brasileiros. O assunto é incômodo principalmente para as autoridades do governo paulista, que se favorecem quando o tema é deixado de lado e quando fingimos que o problema não existe.
No mês passado, eu conversei com um desembargador do TJ sobre o momento atual da facção para apurar mais informações para um artigo que venho preparando sobre o PCC. Ele me pediu anonimato por atuar em processos contra a facção. A grande preocupação do magistrado, e que de fato é sério motivo de alerta, foi o avanço do PCC na fronteira entre o Brasil com o Paraguai.
Ele me descreveu um evento ocorrido em janeiro em que criminosos paraguaios montaram uma operação de guerra para matar um rival que dominava o comércio na fronteira. O crime favoreceu um aliado dos criminosos brasileiros, que estava preso no Paraguai desde 2009 e que mantinha regalias na prisão paraguaia, de onde, segundo autoridades, comandava o crime. “Já temos informações que foi o PCC”, me disse o desembargador.
Ao mesmo tempo que descrevia os fatos que justificam sua preocupação, ele fazia discursos inflamados sobre a importância de se endurecer as penas para acabar com a sensação de impunidade no Brasil. Só mais prisão e mais duras penas seriam capazes de inibir o apetite da facção.
O desembargador parecia se enxergar numa guerra, onde os nossos inimigos estão misturados com a população nas cidades e não vestem uniformes. Para lidar com esses bodes expiatórios que moram ao lado, quase assombrações a nos meter muito medo, o extermínio e o confinamento acabam sendo a única solução. Acho que é esse o senso comum que faz a cabeça de ampla maioria da população. Como se a única forma de deixar o nosso mundo mais seguro fosse retirar esses inimigos do convívio.
Pessoas mandadas para mofar em nossos cárceres medievais são justamente aqueles que ficam mais sujeitos a se tornarem massa de manobra das facções
Deixemos de lado a discussão sobre o que significa para a legitimidade do Estado e da democracia brasileira quando seus representantes cometem crime supostamente em defesa da lei, como ocorreu no caso do Massacre do Carandiru. Claro que os desembargadores não defendem que autoridades cometam crimes. Apenas toleram cinicamente, respaldando-se em minúcias e filigranas jurídicas, num juridiquês que não permite aos comuns mortais perceberem o que eles estão dizendo.
Deixemos essa discussão de lado. Busquemos enfrentar as questões e insinuações que estão sendo feitas pelos desembargadores do TJ. Será que as prisões e o endurecimento das penas são importantes para o controle do crime? Será que a crítica à absolvição dos PMs do Massacre feita pelos interessados na discussão dos direitos humanos contribui para o fortalecimento do PCC?
Já temos conhecimento e vivência o suficiente para saber como a visão dos magistrados pode ser equivocada e simplista. Desde o começo de 1993, quando o PCC nasceu, o total de presos se multiplicou por sete e hoje são mais de 230 mil pessoas encarceradas em São Paulo. O Estado tem hoje a taxa de mais de 522 presos por 100 mil habitantes, a mais alta do Brasil e uma das mais altas do mundo. Foi justamente nesse novo mundo construído atrás das grades que a ideologia do PCC, que prega a união do crime, floresceu e se expandiu para fora dos muros das prisões.
Se em muitos casos as prisões contribuíram para fazer justiça e diminuir a sensação de impunidade nas ruas, são também infinitas as arbitrariedades e decisões equivocadas que acabaram com a vida de pessoas injustamente acusadas. Os desembargadores da Quarta Câmara, responsáveis pela anulação da decisão sobre o Carandiru, são famosos por desconsiderar os argumentos da defesa, mesmo em casos de crimes leves como furtos de salame ou chocolates. Pessoas mandadas para mofar em nossos cárceres medievais são justamente aqueles que ficam mais sujeitos a se tornarem massa de manobra das facções.
O interessante é que, ao mesmo tempo, nos debates que participei e nas entrevistas que fiz recentemente, promotores de Justiça se perguntavam porque os desembargadores paulistas são brandos justamente com os integrantes da facção. Nunca o PCC ganhou tanto dinheiro como nos últimos dez anos, o que fazem de dentro das prisões paulistas. No superlotado sistema penitenciário de São Paulo, as unidades mais vazias são justamente as prisões de segurança máxima ou a de Regime Disciplinar Diferenciado, maior terror das lideranças do PCC. Com capacidade para 120 pessoas, o RDD em Presidente Bernardes tem atualmente 86 presos.
É por isso que acho importante que pessoas comprometidas com os direitos humanos se manifestem sobre as insinuações do post do facebook do desembargador Ivan Sartori. A decisão dos desembargadores de anular o júri do Massacre do Carandiru levanta diversas perguntas, que devemos colocar em pauta. Qual a mensagem passada pela Justiça ao inocentar policiais condenados no júri de matar 111 pessoas? Como essa decisão reforça o discurso do PCC que prega a união dos presos contra o nosso sistema democrático? E, finalmente, uma pergunta mais diretamente voltada ao desembargador Ivan Sartori: Meritíssimo, numa análise fria, qual a sua responsabilidade para o fortalecimento do PCC em São Paulo?
Bruno Paes Manso é jornalista da Ponte Jornalismo, que reporta temas de segurança e direitos humanos. É doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pesquisador e pós-doutorando do Núcleo de Estudos de Violência da mesma universidade.