Acelerando a violência e atropelando a legalidade

Ensaio

Acelerando a violência e atropelando a legalidade
Foto: Paulo Whitaker/Reuters 21.05.2017

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Ester Rizzi e Renan Quinalha


28 de maio de 2017

Todos concordam que o Poder Público deve se ocupar do problema da cracolândia, que há décadas se faz presente no centro da cidade de São Paulo. A questão é: de que forma?

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A semana passada  foi marcada por uma série de ações violentas da Prefeitura de São Paulo na região conhecida como cracolândia. Em meio à Virada Cultural e escândalos de corrupção em Brasília que tomaram a atenção das mídias, no domingo (21) teve início uma megaoperação policial na área, contando com estimados 900 agentes, que soltaram bombas, dispersando a população com extrema violência, apreendendo armas e realizando, segundo se noticiou , 38 prisões. As imagens que retratam a investida são fortes. O chamado “Dia D” foi articulado como uma ação policial sigilosa mesmo no âmbito da administração municipal, sem que tivesse sido sequer comunicada a Secretaria de Saúde , rompendo com o que já havia sido acordado sobre este tema com o Ministério Público e a Defensoria Pública, que há muito se articulam para acompanhar a atuação na área. De acordo com o Secretário do Governo Municipal, Julio Semeghini, “a ação foi totalmente diferente do que fazia parte do projeto”.

Todos concordam que o Poder Público deve se ocupar do problema da cracolândia, que há décadas se faz presente no centro da cidade de São Paulo. A questão é: de que forma?

Uma primeira abordagem, mais humana, que está representada pelo programa social “De Braços Abertos” da gestão passada, é encarar a situação como um problema complexo, dando predominância aos aspectos relacionados com a saúde, o cuidado e a assistência social. Independentemente dos resultados obtidos , certo é que a questão estava longe de ser solucionada, mas fato é que avanços significativos e graduais eram já verificados .

Talvez isso seja o mais difícil de ser compreendido por uma sociedade cada vez mais acostumada à política de resultados imediatos, pautada pelo marketing e feita para funcionar apenas enquanto imagem bem construída nas redes sociais em conjunturas altamente cambiantes.

Trata-se, no entanto, de um problema que demanda tempo e múltiplas estratégias de atuação em diversos níveis e frentes. E esse tempo necessário para lidar com problemas complexos é o que o prefeito Doria se recusa a conceder, conforme a própria ex-secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, Soninha Francine, alertou , afirmando que ele deseja “resultados visíveis” em prazos impossíveis de serem cumpridos. São Paulo não pode, contudo, ficar sujeita à velocidade de um projeto político de autopromoção e oportunismo, capitaneado pelo mote “acelera”, que tem se revelado mais como “atropela”.

Essa gestão está claramente deslocando  a predominância das áreas de saúde e assistência social para lidar com esse problema para as pastas de segurança pública, justiça e zeladoria urbana. Também na região da Luz veio o desejo de reinvenção e ruptura, de construir essa distópica “Cidade Linda”, resgatando a ideia de rebatizar a região de “Nova Luz” com o claro objetivo de acomodar a pressão do mercado imobiliário paulistano, assim como quer rebatizar o Bom Retiro de “Little Seul”. “A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. Essa área será liberada de qualquer circunstância como essa. A partir de hoje, isso é passado”, chegou a afirmar o prefeito.

Novamente, pergunta-se: de que forma a cruzada higienista e orientada pelos interesses do mercado imobiliário da “Cidade Linda” chegou à cracolândia, acelerando? Aqui reside a questão mais problemática. Vivemos em um Estado de Direito, em que a atuação estatal é regulada por leis. Não vale tudo em matéria de políticas públicas. As leis precisam ser observadas e cumpridas porque são mecanismos de proteção do indivíduo contra a ação estatal, impedindo os mais diversos tipos de autoritarismos. Por mais curioso que possa parecer, é justamente o prefeito que encarna a caricatura do  “empresário liberal”  que desrespeita tanto as liberdades individuais quanto a própria propriedade privada, atentando contra o ordenamento jurídico em sua busca por “eficiência” a qualquer custo.

é significativo que o prefeito-gestor tenha passado por cima até mesmo da propriedade privada e do direito à liberdade individual

O prefeito assinou um decreto , publicado no sábado (20), declarando a região do entorno da cracolância como uma área de utilidade pública, para fins de desapropriação. Na terça-feira (23), a prefeitura derrubou imóveis em operação desastrosa: sem que os tivesse vistoriado – como o próprio Secretário de Serviços e Obras admitiu –, iniciou a demolição quando pessoas ainda se encontravam no interior do prédio, deixando feridos. Desnecessário dizer que é preciso apurar responsabilidades civil e criminal pelas lesões corporais e danos causados, bem como pela imprudência em geral. Mas, para além disso, fica a pergunta maior: como é possível ingressar e demolir área particular, sem ordem judicial?

O Secretário Municipal de Justiça, Anderson Pomini, afirmou que “a Prefeitura adotará o rito previsto no artigo 5º da Constituição Federal que autoriza a requisição administrativa sempre que houver um iminente interesse público”. Disse que os proprietários serão indenizados “posteriormente”. A Constituição fala em iminente perigo público, não interesse – e daí pergunta-se: se havia perigo iminente a justificar uma medida extrema e radical contra a propriedade privada, como houve tempo para a preparação da declaração de utilidade pública, que pressupõe um planejamento de desapropriação? E mais: se era caso de desapropriação, a própria Constituição determina prévia e justa indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV).

A requisição administrativa supostamente utilizada pela Prefeitura não substitui mandado de imissão na posse, expedido por juiz, e serve apenas  para situações-limite, tendo caráter transitório – ou seja, requisita-se para o uso temporário, não para a demolição e futura aquisição da propriedade por desapropriação. Ainda, não há sequer notícia de que tenha sido divulgado o documento formal de requisição ou qualquer peça do processo que a instrui, apesar do que foi anunciado .

Não por outras razões a Defensoria Pública do Estado de São Paulo obteve decisão impedindo a Prefeitura de promover remoções compulsórias, ou interditar e demolir edificações habitadas, sem o prévio cadastramento dos moradores para encaminhamento de saúde e habitacional, disponibilizando alternativas imediatas e permitindo que retirem pertences e animais de estimação. Na decisão, o Poder Judiciário reconheceu a violência praticada, afrontando-se a dignidade da pessoa humana. Não se trata, como fica evidente, de contrariar políticas públicas alinhadas com programa político escolhido pelo voto popular, mas sim de controlar sua legalidade e respeito aos princípios mais basilares do Estado Democrático de Direito, abrindo ampla margem para judicialização do tema.

Depois da ação desastrosa, o prefeito, por meio da Procuradoria Geral do Município, buscou obter decisão judicial que autorize, de forma genérica, a “busca e apreensão” de pessoas em situação de drogadição, com a finalidade de apurar a necessidade de internação compulsória, o que seria feito por equipe multidisciplinar. A medida não está buscando a internação compulsória de indivíduo específico, não estando, portanto, em discussão sua conveniência médica ou legalidade. Traduzindo: a municipalidade deseja ser autorizada a deter indivíduos aparentemente viciados em drogas (sabe-se lá qual o critério que permite compor essa evidência e quem fará essa avaliação inicial) para determinar, posteriormente (em quanto tempo?), se é caso, ou não, de internação compulsória. A liberdade de ir e vir dos indivíduos é outro valor basilar de nossa sociedade, com o qual não se pode brincar, sobretudo conhecendo a cultura política autoritária e violenta que ainda impera nas instituições estatais brasileiras. Ninguém pode ser privado dessa liberdade fundamental  só porque está “vagando na rua” “suspeito de drogadição”.

Membro do Ministério Público Estadual qualificou a ação na cracolândia como uma “selvageria”, anunciando apuração sobre a existência de improbidade administrativa, que se espera seja levada a efeito. Chamou o pedido de busca e apreensão de pessoas de “esdrúxulo”, e acusou a prefeitura de querer promover uma “caçada humana sem paralelo no mundo”. No entanto, a despeito do posicionamento contrário do MP e da Defensoria, a medida foi concedida , sem que se possa ao menos ter detalhes da decisão, vez que decretado segredo de justiça. Ou seja: se alguém for detido pela prefeitura por estar vagando na rua, não saberemos sequer em que termos isso ficou autorizado pelo Poder Judiciário e não poderemos ter controle sobre os limites e os alcances dessa autorização. Isso é grave demais.

Em meio a flagrantes ilegalidades e falta de planejamento, é significativo que o prefeito-gestor tenha passado por cima até mesmo da propriedade privada e do direito à liberdade individual, tratando pessoas como se objetos fossem. Ainda que o programa de governo eleito passe por embelezamento da cidade, privatizações e aceleração da velocidade da própria atuação da prefeitura, isso não significa que o prefeito possa vender como boa gestão medidas mal-planejadas, que a cidade seja propriedade sua, que seus cidadãos estejam à sua livre disposição e que instituições, as normas jurídicas e a Constituição Federal possam ser atropeladas, como está ocorrendo. Pode até ser que São Paulo seja para sempre “o avesso do avesso do avesso”. Mas está calejada em relação a políticos que vendem soluções mágicas do tipo “eu faço, e já”, ainda mais daqueles que têm por trás “a força da grana”.

Ester Gammardella Rizzié advogada, doutora em direito pela USP e professora da Faculdade Cásper Líbero e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Renan Quinalhaé advogado, doutor em relações internacionais pela USP e ativista de direitos humanos.

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