Reforma do ensino médio: o risco de ampliar as desigualdades educacionais

Ensaio

Reforma do ensino médio: o risco de ampliar as desigualdades educacionais
Foto:

Compartilhe

Temas

Roberto Catelli


28 de março de 2017

Não se deve apenas dizer que tudo foi em vão, de que nada foi feito, que tudo é falência, ou - por outro lado - que qualquer resposta seja por si só positiva. Tal acento na falência do ensino médio pode ser o caminho para investir em novas fórmulas que podem ser também precipitadas ou falsas soluções que atendem aos interesses de apenas alguns

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

A reforma do ensino médio estabelecida por meio da Medida Provisória 746/2016 e convertida em Lei 13.415/2017 após aprovação na Câmara dos Deputados e Senado e sanção presidencial, nasceu com uma limitação intrínseca: ter sido proposta por meio de uma medida provisória sem abrir amplo processo de discussão com a sociedade acerca de um tema que é, antes de tudo, interesse de todos os brasileiros. Especialistas, representantes de associações profissionais, professores, estudantes e famílias tinham de ser amplamente ouvidos para que se pudesse, republicanamente, definir os rumos da educação de jovens no país levando em conta o conjunto de aspectos que envolvem a formação escolar e cidadã dos brasileiros.

Esta deformidade explica em parte a surpresa e estranhamento de alguns pontos de uma reforma tão apressada, uma vez que não houve a necessária maturação concebida em meio a conflitos e acordos possíveis que são parte constitutiva do jogo democrático. 

A urgência da reforma foi justificada por representantes do governo, incluindo o próprio Ministro, pelos baixos resultados dos estudantes do ensino médio nas avaliações nacionais realizadas pelo MEC (Ministério da Educação) e também pela insatisfação dos jovens em relação ao atual ensino médio. Causa estranheza, contudo, que os jovens tenham servido de argumento para a mudança, mas não tenham sido consultados sobre o novo modelo que seria adotado.  

Não se pode deixar de mencionar, entretanto, que vivemos um período de grande expansão do acesso ao ensino médio, o que por si não é pouco em termos de ampliação do direito à educação. Em 1992, conforme a PNAD, 19,8% dos jovens de 15 a 17 anos frequentavam o ensino médio, em 2012, 20 anos depois, eram 53,8%. Em 1992, 18,7% dos jovens de 18 a 24 anos tinham completado o ensino médio e em 2012, 57,3%. A mudança não foi pequena em 20 anos, atravessando os governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Houve um grande processo de inclusão de adolescentes na escola, o que foi, por si só, um saldo positivo. Entretanto, dificilmente se faz isso sem que se corra o risco da perda de qualidade. Por isso, o debate acerca da qualidade se sucede ao da expansão.

Nesse sentido, não se deve apenas dizer que tudo foi em vão, de que nada foi feito, que tudo é falência, ou – por outro lado – que qualquer resposta seja por si só positiva. Tal acento na falência do ensino médio pode ser o caminho para investir em novas fórmulas que podem ser também precipitadas ou falsas soluções que atendem aos interesses de apenas alguns.

Examinemos então as mudanças propostas.

Carga horária mínima anual

A reforma indica que a carga horária mínima anual no ensino médio deverá ser ampliada de forma progressiva de oitocentos para 1.400 horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos 1.000 horas anuais de carga horária, a partir da publicação da lei. Especifica ainda que a carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não poderá ser superior a 1.800 horas do total da carga horária do ensino médio. Isso quer dizer que em um sistema de 1.000 horas, a BNCC preencherá 600 horas por ano letivo, ou seja, representará 60% do currículo. Já em uma escola com carga horária de 1.400 horas, a BNCC ocupará cerca de 40% do currículo.

Essa progressiva ampliação do ensino integral se adequa às metas do Plano Nacional de Educação, mas precisa ainda avançar nos principais desafios dessa agenda, para conseguir escapar de ser uma simples ampliação, esvaziada de sentido, da rotina de sala de aula, já bastante exaustiva para muitos estudantes. Afinal para que precisamos de 1.400 horas? Que formação se preconiza com tal carga horária? Sabemos que manter uma jornada integral com a mesma estrutura da escola de 800 horas tornará ainda mais enfadonha a escola criticada hoje pelos jovens. É preciso ter claro que ensino integral não é o mesmo que educação integral, que se refere a uma proposta pedagógica diferenciada incluindo um processo formativo mais rico, o qual se relaciona com o sujeito em uma perspectiva integral, que vai além das disciplinas convencionais, propondo também um olhar mais profundo sobre o território e cultura nos quais o jovem está inserido, fortalecendo o desenvolvimento da cidadania e da participação social.

Deve-se mencionar ainda que o ensino noturno e o atendimento a jovens e adultos são mantidos na reforma, mas não há elementos suficientes para caracterizá-los. Com qual carga horária funcionarão? Em quais condições? Deve-se mencionar que, conforme o Censo 2010, 65 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais não tinham concluído nem mesmo o ensino fundamental e que 74% dos jovens com 18 anos ou mais trabalhavam ou procuravam emprego em 2013 conforme a Pesquisa Agenda Juventude Brasil realizada pela Secretaria Nacional de Juventude. O estudo indica ainda que 65% dos jovens têm sua inserção no primeiro emprego antes dos 18 anos. Ou seja, não dar a devida atenção a este imenso grupo de estudantes trabalhadores pode significar a negação do direito à educação para muitos brasileiros.

Abrangência curricular

Define-se que os currículos devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente da República Federativa do Brasil, sendo que no ensino médio podem ser organizados diferentes arranjos curriculares levando em conta cinco áreas de conhecimento: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional. 

Explicita-se que somente o ensino da língua portuguesa e da matemática são obrigatórios nos três anos do ensino médio. Os currículos do ensino médio devem incluir ainda, obrigatoriamente, o estudo da língua inglesa e poderão ofertar outras línguas estrangeiras, em caráter optativo, preferencialmente o espanhol. Quanto ao ensino de artes, especifica-se que, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica mas não necessariamente no ensino médio. Ou seja, nada mais está a priori garantido. Tudo vai depender do que definir a BNCC para o ensino médio, que se torna de grande relevância.

Ao contrário do que se propagandeia, a reforma não necessariamente vai diversificar o currículo, pois os Estados não estão obrigados a ofertar um amplo leque de opções para os estudantes em todas as áreas do conhecimento. Eles devem sim garantir aquilo que está definido como a parte obrigatória do currículo definido pela BNCC, que pode ser entre 40% e 60% do currículo. Para além disso, uma rede pode, segundo as suas possibilidades, escolher ofertar apenas uma das áreas. A se considerar as dificuldades financeiras dos Estados para investir em educação, manter a qualidade e contratar professores, parece muito mais provável que, em vários Estados, especialmente os mais pobres, possamos ter um currículo ainda mais simplificado em vez de uma ampliação. As redes poderão recorrer aos serviços privados, por exemplo, para oferecer cursos de formação técnica profissional no lugar de artes, educação física, história, geografia, filosofia, sociologia e ciências.  O espaço aberto para a privatização de parte do ensino está indicado na reforma, mas não são explicitados os caminhos e mecanismos por onde se dará. 

A formação técnica e profissional

Esta é a área que se constitui como a maior novidade e pode ocupar significativo espaço no currículo que já não exige a dedicação intensiva a todas as disciplinas ao longo de todo o ensino médio. 

Afirma-se que cada sistema de ensino terá liberdade para definir as competências e habilidades a serem desenvolvidas. Fica também a critério das redes de ensino de cada um dos Estados definir e organizar percursos formativos integrados, concatenando a formação profissional com os conteúdos formativos definidos nos objetos de aprendizagem previstos na BNCC. Também fica a critério dos sistemas de ensino considerar a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo. Quer dizer, o que se denomina aqui de formação profissional pode ser um extenso leque de opções, sendo admitida inclusive a oferta de formações experimentais em áreas que não constem do Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos mas que sejam reconhecidas pelo respectivo Conselho Estadual de Educação. 

Chama especial atenção a possibilidade de a formação profissional poder ser realizada na própria instituição ou em parceria com outras instituições, devendo ser aprovada previamente pelo Conselho Estadual de Educação e homologada pelo Secretário Estadual de Educação e certificada pelos sistemas de ensino. Abre-se a possibilidade de qualquer instituição, uma vez autorizada pelo Conselho Estadual de Educação, sem necessariamente ter professores licenciados, oferecer cursos para alunos de ensino médio no campo da formação profissional utilizando recursos públicos a serem repassados para essas instituições por meio do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

Educação à distância, por módulos e créditos

Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância que tenham o que se denominou de “notório reconhecimento”, a ser comprovado por um conjunto de possibilidades que inclui o que se definiu simplesmente como demonstração prática. Mais uma vez, abrem-se as portas para que sistemas privados possam estabelecer parcerias com as redes públicas para oferecer uma estratégia que pode ser eficiente em casos muito específicos, mas traz o risco de simplificar excessivamente o processo de ensino-aprendizagem, privando os estudantes do convívio social e da rica experiência de construção coletiva na sala de aula. Deve-se destacar que não se menciona a necessidade de os cursos serem parcialmente presenciais, podendo ser organizados integralmente à distância.  

O ensino médio pode também ser organizado em módulos ou em um sistema de créditos, permitindo que o estudante vá cursando disciplinas sem a necessidade de concluir um ano letivo para obter a aprovação, que se fará, nesse caso, pela soma dos créditos ou dos módulos realizados. Isso implica na possibilidade de fragmentar ou diluir a proposta pedagógica da escola, não havendo nesse caso um projeto pedagógico da escola que oriente o trabalho de uma série ou nível, mas sim a oferta isolada de cursos e disciplinas para que o estudante complete os créditos necessários para alcançar a certificação.

Por fim, cabe perguntar o que resultará tal reforma em termos de acesso ao ensino superior. Já é público que, em função da BNCC e da reforma do ensino médio, o Enem sofrerá mudanças, ou seja, ele deve atender àquilo que está indicado nos objetos de aprendizagem formulados na BNCC para o ensino médio. Mas em que medida os alunos das redes públicas estarão mais ou menos preparados para tais exames se considerarmos que a carga horária dedicada às chamadas disciplinas e áreas de conhecimento tradicionalmente presentes nos exames foi reduzida? Será que as oportunidades dos estudantes das redes públicas não serão ainda mais reduzidas quando comparados aos alunos de redes privadas, já que estas manterão, para seus estudantes, cargas horárias mais elevadas para ensinar conteúdos de história, geografia, ciências, filosofia e sociologia? Será que a nova proposta não afasta o estudante da escola pública da formação de ensino superior já que é oferecida a ele prioritariamente uma formação técnica voltada para o mercado de trabalho?

O espírito da reforma indica que haverá um espaço significativo para a iniciativa privada no campo da formação profissional ou da educação à distância, podendo vir a ser uma alternativa para preencher o currículo de redes estaduais que possuem muita dificuldade para contratar professores e construir resultados positivos no que se refere à qualidade. Pode-se limitar os esforços para ampliar e aprofundar os estudos em áreas e disciplinas que não incluam a língua portuguesa e a matemática, fazendo com que, em vez de ofertar mais possibilidades aos jovens das redes públicas, os deixem com uma perspectiva mais limitada de horizonte pessoal e profissional. Assim, o resultado final da reforma pode aumentar ainda mais a desigualdade educacional no país. Enquanto a escolaridade média da população branca era 10,7 anos, a da população negra era de 9,4 anos em 2014. Enquanto a população da região Nordeste tinha em média 9,1 anos de estudo em 2014, a região Sudeste tinha 10,5 anos. A taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais em 2014 era de 95% na região Sul e Sudeste e de 83% na região Nordeste. No ensino superior, depois de passado por todo o processo da educação básica, a desigualdade é evidente: enquanto os 25% mais pobres ficam com 6,1% das matrículas, os 25% mais ricos ficam com 40,4% das matrículas na faixa etária de 18 a 24 anos.

Sem os necessários investimentos para que as redes consigam desenvolver um currículo efetivamente robusto e realmente diversificado, podemos ter um ensino médio pautado pelo mínimo exigido pela BNCC combinado com cursos profissionalizantes de qualidade duvidosa organizados pela iniciativa privada a baixo custo. E essa hipótese ainda se fortalece com a aprovação em fins de 2016 da emenda constitucional que limitou o teto de gastos do governo por 20 anos e limita também a ampliação de gastos com a educação.

Roberto Catelli é doutor em educação pela Universidade de São Paulo, coordenador da unidade de educação de jovens e adultos da Ação Educativa e professor do ensino superior na área de ciências humanas.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.