Não foram só os candidatos e suas propostas que viraram motivo de divisão e polarização na reta final da campanha eleitoral. Entre os assuntos mais quentes está o papel desempenhado por um aplicativo, o WhatsApp.
Importante meio de comunicação privada dos brasileiros nessas eleições, o app foi o meio pelo qual muitas mensagens políticas em áudio, vídeo, texto e links foram trocadas. Mais do que isso, a ferramenta foi alvo de muita discussão por conta de estratégias de campanha que envolviam a disseminação de conteúdos por grupos e mensagens do “zap”.
Nessas conversas o protagonismo do WhatsApp adquiriu contornos negativos aos olhos de muitos . A inércia da Justiça Eleitoral perante os problemas que dali emanaram também foi alvo de críticas. Como um fantasma, descrições sobre o uso do aplicativo por campanhas passaram a assombrar a esfera pública, algo que não consegue ser aplacado pelo Judiciário.
O enfrentamento do problema exige ir além da assombração. O caminho para proteger direitos fundamentais e o processo democrático passa por diagnosticar o tamanho e o formato do problema, virar chaves e alavancas na abordagem jurídica e reconhecer limites e papéis dos atores envolvidos.
Um subterrâneo de mentiras compradas?
A narrativa que apareceu na reta final de campanha combina quatro fatores.
Em primeiro lugar, pesquisadores e jornalistas apontaram que muitas informações que circulam por meio do WhatsApp são fraudulentas, produzidas sem compromisso com qualquer objetividade ou protocolo jornalísticos – com feições de informações “produzidas livremente” são, na verdade, propaganda política.
Segundo, nos dias finais da campanha, é descoberto um esquema de spam político via WhatsApp. A preocupação eclodiu com a reportagem assinada por Patrícia Campos Mello, na Folha de S. Paulo, de que empresários apoiadores de Jair Bolsonaro buscaram a contratação não declarada desses “disparos em massa” de mensagens contrárias ao PT (Partido dos Trabalhadores). Esse spam ocorreria a partir do uso de listas de telefones obtidas de maneira irregular cujo o uso é vedado perante a legislação eleitoral.
Soma-se aos dois primeiros fatores um terceiro. Por ser um app de mensagens privadas criptografadas e propriedade de empresa sem representação no Brasil, o WhatsApp tem sido descrito por muitos como uma “caixa preta”. Haveria dificuldade de controle ou monitoramento das mensagens, o que facilitaria sua configuração como uma espécie de subterrâneo da conversa política.
Assim, a figura é de um rede privada repleta de informações fraudulentas jorradas por empresas contratadas com dinheiro não declarado. A isso se soma uma postura da Justiça: poucos dias depois do primeiro turno, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, disse que é “muito difícil” controlar a disseminação de informações falsas pelo app. Após ser cobrada por juristas para agir, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministra Rosa Weber, disse que ainda não descobriram o “milagre” para lidar com a questão.
Ampliando o quadro
Nenhum desses fatores é falso, mas há outros fatores que ajudam a entender, por exemplo, por que a Justiça Eleitoral está sendo vista como inerte. Conforme já argumentamos , quem olhar para as campanhas consideradas como bem-sucedidas no WhatsApp – como a de Jair Bolsonaro –, deve levar em conta certas peculiaridades do aplicativo e dessas eleições em particular.
O argumento é que a estratégia de campanha do campo conservador, já vitorioso em pleitos em municipais e estaduais, se dá pela construção de uma infraestrutura de propaganda em rede que remonta à ascensão de uma militância antipetista massiva no Brasil a partir de meados dos anos 2010. Ao que parece, é uma infraestrutura que permite a acoplagem de atores que trabalham por objetivos comuns (como a eleição de Bolsonaro) – sendo eles voluntários ou profissionais, à frente de práticas lícitas e ilícitas. A sua eficácia se mede pela capacidade de entregar a sua propaganda às pessoas na ponta da linha e ganhar a adesão de novos eleitores.
Ocorre que no WhatsApp a disseminação de conteúdos não tem o mesmo formato de plataformas abertas, como o Twitter, o Youtube e o Facebook. Não existem algoritmos de curadoria, feeds ou mesmo venda de anúncios por parte da empresa. Nenhuma campanha conseguirá monitorar seu desempenho com precisão.
O “zap” ascendeu no Brasil em substituição ao SMS, por ser mais barato, e a campanha paga feita por ali parece ser uma versão hipertrofiada de campanhas de spam realizadas no passado. Estudos demonstram , por exemplo, a força do spam no email na ocasião do referendo sobre o desarmamento, em 2005. A diferença parece ser a escala (porque a população está mais conectada), a velocidade e a possível segmentação das audiências atingidas através de uso de dados pessoais ( como visto aqui e aqui ).
Um componente, entretanto, é comum – a ideia de que é necessário buscar a viralização e a adesão da mensagem aos sentimentos e emoções dos atingidos. Esta aderência é a chave do sucesso, pois é por causa dela que a mensagem é passada para frente e defendida de forma descentralizada por quem nela acredita.
Entender esse funcionamento coloca a campanha no WhatsApp em outra caixa, que não a das plataformas abertas de rede social. E isso exige a a mobilização de outros instrumentos da lei eleitoral por parte das campanhas e das instituições.
Virando chaves na abordagem jurídica
Parte da frustração com a reação da Justiça e com as iniciativas tomadas pela empresa partem dessa justaposição de coisas diferentes. Ao passo que em redes sociais abertas a “remoção” e o “controle” são entendidos de uma forma, como entendê-los para uma tecnologia que se parece mais com o email? O conteúdo não fica “no ar”, disponível, mas sim transita rapidamente de aparelho em aparelho. Tais diferenças e o necessário respeito do sigilo das comunicações entre as pessoas demanda que algumas chaves sejam viradas no tipo de abordagem que pedimos que o sistema jurídico faça para garantir a lisura no pleito.
A primeira delas é tentar enfrentar o problema dos disparos em massa olhando menos para as regras que disciplinam a remoção de conteúdo ou a compra de anúncios em redes sociais ou mecanismos de busca (o chamado “impulsionamento”) e mais para aquelas que protegem a privacidade dos números de telefones utilizados para disparos ou convites para grupos em massa.
Um ponto de partida é o artigo 57-E da Lei das Eleições , que diz ser vedada a “doação ou cessão [por parte uma série de atores] do cadastro eletrônico de seus clientes, em favor de candidatos, partidos ou coligações”. O mesmo artigo veda a venda de cadastros, punindo as irregularidades com multa de até R$ 30 mil.
O uso de tal regra é muito tímido comparado às práticas reveladas nesta eleição. Em um levantamento dos julgados sobre o artigo, vê-se que uma das maiores preocupações era o uso de listas de emails de entidades de classe e sindicatos para fazer campanha, mas isso parece bem menos significativo do que a disputa acirrada de memes vista em 2018.
Puxar a alavanca pode ser mais fácil se considerarmos a entrada em vigor em 2020 da já aprovada Lei Geral de Proteção de Dados pessoais. A vigência dessa lei abrirá a possibilidade de uma regulação bem mais rígida para o uso dequalquer cadastro por parte dequalquer ator, inclusive campanhas políticas. Para as próximas eleições, a Justiça Eleitoral precisa se aplicar em compreender todas as novas regras e construir todas as pontes necessárias com as autoridades que serão responsáveis pela aplicação da lei (o que ainda está indefinido). Mais do que isso, o TSE pode pensar em instituir novos instrumentos regulatórios que aprendam com as preocupações presentes na nova lei, como a necessidade das campanhas declararem as bases de dados e cadastros que utilizarão.
A segunda chave a ser virada é a da responsabilidade da campanha. Dado o fato de que as novas campanhas estão se configurando em rede, a Justiça Eleitoral pode discutir ampliar mecanismos de responsabilização das candidaturas por atos e contribuições em seu favor independentemente de vínculo direto. Isso ajudaria a coibir a acoplagem de “contribuições” problemáticas na rede de propaganda das candidaturas, como as noticiadas pela Folha. Nesta frente, o maior cuidado é construir arranjos que evitem que campanhas adversárias “sabotem” umas às outras infiltrando agentes maliciosos em suas fileiras para ensejar possível responsabilização. Ideias nessa direção já foram aventadas por especialistas e pelo próprio TSE .
Em terceiro lugar, há espaço para uma análise mais detida dos gastos das campanhas com estratégias digitais, lícitos e ilícitos – como tentar seguir o dinheiro para encontrar indústrias de propaganda que corram à margem da legislação eleitoral. Esta atitude contribuirá para melhor compreender as novas práticas e informar legislações e regulações futuras, mais adaptadas para proteger a lisura do processo e os direitos das pessoas.
Uma quarta mudança de atitude do sistema jurídico pode ser feita perante a academia. Pipocaram um sem número de estudos e monitoramento das redes durante o processo eleitoral, energia que poderia ser melhor aproveitada em favor de novos diagnósticos e soluções inovadoras ( o que já foi defendido aqui ). Neste ponto são entraves a falta de interdisciplinaridade na “doutrina” que serve para que os magistrados interpretem as regras, a falta de consideração de pesquisas e análises para a elaboração de leis que regram temas de tecnologia no Congresso Nacional e por vezes a resistência de instituições à construção de redes de apoio e de processos abertos e colaborativos.
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O processo eleitoral deixou claro que o Judiciário não resolverá o problema sozinho e que a sociedade civil e a academia podem contribuir. Do lado do WhatsApp, a empresa também foi criticada e chamada à ação – seja por partidos políticos , jornalistas e pesquisadores .
Em ensaio sobre internet e eleições publicado no Nexo no fim de 2017, defendi que “problemas complexos exigirão soluções complexas, pensadas a partir do esforço compartilhado de diferentes setores”. E a recomendação perdura. Ajudará se os representantes do setor privado se engajarem na conversa, ouvindo e respondendo às sugestões dos demais setores e divulgando cada vez mais dados que permitam que o entendimento sobre o fenômeno se amplie.
Todas as mudanças sugeridas acima devem fazer parte de uma curva de aprendizado pela qual o sistema político (que elabora e aprova a legislação eleitoral) e o Judiciário (que o aplica) devem passar para restabelecer a confiança da sociedade na adequação da lei e na efetividade da função de árbitro dos magistrados eleitorais, que passam por uma crise. A saída está em conhecer a fundo o que ocorreu e evitar armadilhas mentais que parecem atalhos, mas são simplesmente rotas de fuga – como é o caso dos pedidos de suspensão do aplicativo (feitos por partidos), de questionamentos à criptografia e de responsabilização única de diferentes plataformas.
Francisco Brito Cruzé diretor do InternetLab, centro independente de pesquisa em direitos e tecnologia. Advogado, é mestre (2015) e doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde coordena o Núcleo de Direito, Internet e Sociedade. Em 2013, foi pesquisador visitante no Center for Study of Law and Society da Universidade da Califórnia – Berkeley.