Alastrou-se como fogo a ideia do incêndio no Museu Nacional, ocorrido em setembro deste ano, 2018, como metáfora para o Brasil. Ignora-se outra imagem poderosa: o Rio é nacional como o museu destruído. O deputado e ex-governador paranaense Munhoz da Rocha propôs torná-lo “cidade nacional”, com a transferência da capital para Brasília em 1960. Não é possível apagar, sustentou, o traço nacional construído pelos dois séculos como capital do Brasil.
Problemas existem em outros museus, como os paulistas, mas a diferença é ilustrativa.
O Museu do Ipiranga, Língua Portuguesa e Memorial da América Latina são estaduais. No Rio, o Museu Nacional, Nacional de Belas Artes e Histórico Nacional são federais. Milhares de quilômetros separam os reais responsáveis dos respectivos museus. O Histórico Nacional sozinho abriga dois terços do acervo do Ministério da Cultura. Metade das unidades do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) está no Rio, assim como a Academia Brasileira de Letras, de Ciências, Funarte e Ancine, Arquivo e Biblioteca Nacionais. Nos esportes, temos o Comitê Olímpico Brasileiro e o legado de 2016. O Rio é a casa da seleção canarinho, com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e os clubes cariocas de expressão nacional, hegemônicos inclusive em Brasília.
Gestora do Museu Nacional, a UFRJ, antes chamada de Universidade do Brasil, é a mais antiga e, de longe, a maior federal do país, dona dos 5 milhões de m² da Cidade Universitária (Nacional, diga-se) no Rio. Sem contar UniRio, UFRRJ e UFF, o orçamento da UFRJ sozinho dobra a soma das três federais de São Paulo (Unifesp, UFABC, UFSCar), que tem população quase três vezes maior. Alguém no Rio tem sete vezes mais chance que em São Paulo de ser aluno de federal. Fora incontáveis institutos nacionais, como IBGE, IHGB, INPI e Inmetro. O Observatório Nacional define do Rio a Hora Legal Brasileira. Troque-se a convenção “horário de Brasília” por “horário do Rio”.
A União decretou calamidade na saúde carioca e criou departamento permanente para seus seis hospitais na cidade (Andaraí, Bonsucesso, Cardoso Fontes, Ipanema, Lagoa e Servidores do Estado) em 2005, fora Fiocruz, Inca, ANS e mais nove hospitais universitários. A primeira intervenção federal na atual Constituição vale-se das Forças Armadas, enraizadas na cidade e arredores, sobretudo as escolas de elite e a Marinha – estão no Rio suas instituições, 53 mil efetivos (37 mil na cidade) e 92% dos servidores civis. Na obra “Rio nacional Rio local”, de 2005, Mauro Osório traz estimativa do Correio da Manhã de que metade do território da Guanabara pertencia às Forças Armadas em 1960.
Christian Lynch aponta que o Rio supera o Distrito Federal em servidores federais, sem contar suas empresas federais, com dois terços do patrimônio líquido de todas da União, 82 das 101 subsidiárias e multidão de funcionários e terceirizados. Domina a área de energia: a maior empresa do Brasil, a Petrobras, na prática a ANP (Agência Nacional do Petróleo), Pré-Sal Petróleo, Eletrobras, Eletronuclear e Comissão Nacional de Energia Nuclear. Golden share impede a Vale de sair do Rio. Ficam no Rio o poderoso BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), seções do Banco Central, Casa da Moeda, CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e Previ, o maior fundo de pensão da América Latina. Economistas cariocas em funções federais estabilizaram o Brasil sem sair do Rio, mas seu estado apresenta as piores contas do país. Desde 2016, calamidade financeira precipita nova intervenção branca federal.
Não é sábio gerir de Brasília o Rio, com seus hospitais, empresas, institutos, universidades, museus e tropas federais. A União deve controlar diretamente seu incalculável patrimônio na cidade
Corte e município neutro no Império, a República, segundo José Murilo de Carvalho, castrou a política local e o autogoverno do Rio para fazê-lo sua vitrine. O prefeito era designado ad nutum pelo presidente, o Senado revia decisões dos vereadores. A proverbial inaptidão carioca para eleições locais não é acidente histórico. Para Roberto DaMatta, apenas “mentalidade estupidamente onipotente” crê possível transformar, com uma canetada e sem pensar nas consequências, a capital nacional em estadual. Não há patriotismo estadual ou oligarquias regionais fortes como em outros estados, forjados em revoltas e guerras contra o poder central, representado pelo Rio: Inconfidência Mineira, Confederação do Equador (Nordeste), Cabanagem (Norte), Farroupilha (Sul), Revolução Constitucionalista (SP).
Marly Motta associa a identidade do Rio à “capitalidade”, ou seja, à função de síntese e representação nacionais. Capital colonial, imperial e republicana, sediou Portugal e Reino Unido global, presente em nada menos do que cinco continentes. Brasília é capital administrativa, o Rio continua a representar o Brasil, que recorre à velha capital como cartão-postal dos megaeventos: ECO-92, quando voltou formal e temporariamente a ser capital, Panamericano de 2007, Jogos Mundiais Militares (2011), Rio+20, Jornada Mundial da Juventude (2013), núcleo organizador e final da Copa do Mundo em 2014, única sede sul-americana da Olimpíada, em 2016.
Os ícones da cidade maravilhosa são nacionais. Construiu-se indissolúvel “identidade simbólica” entre o Brasil e sua cidade eterna: samba (do avião) e carnaval, maior espetáculo da Terra; Bossa Nova e “Garota de Ipanema”, canção das mais executadas em todos os tempos; Maracanã, templo supremo do futebol; Copacabana, praia mais famosa do planeta; Pão de Açúcar e Cristo Redentor, maravilha do mundo moderno; favelas, expressão da nossa desigualdade social; Carmen Miranda e Zé Carioca, da Disney; e inúmeros filmes, como os longas “Rio”, “Cidade de Deus”, “Tropa de Elite” e “Rio, 40 Graus”, que inspirou o Cinema Novo. Na televisão, a hegemonia histórica da carioca Globo difunde cobertura desproporcional do Rio em novelas de alcance internacional e programas como Jornal Nacional.
O Rio pode espelhar a alemã Bonn, ex-capital, hoje cidade federal, sede primária de seis ministérios, secundária da chanceler. O presidente despacharia periodicamente no Rio. Voltariam pastas como Defesa, Minas e Energia, Educação, Cultura, Esportes e Meio Ambiente, revitalizando-se áreas como o centro da cidade, o reconstruído Museu Nacional e estruturas olímpicas abandonadas. Na América Latina, o presidente eleito do México anunciou plano para retirar até 12 ministérios da capital. No Chile, Valparaíso sedia o Parlamento e Cultura. Há países que dividem pastas entre as capitais nacional e administrativa, planejada: Coreia do Sul (Seul e Sejong) e Malásia (Kuala Lumpur e Putrajaya). O Egito inaugurará segunda capital, administrativa, em 2020.
A geografia política indica que países emergentes, como o Brasil, costumam ter duas capitais – uma costeira, como o Rio; outra continental, como Brasília. Nos BRICS, o caso clássico é a Rússia. Antiga sede imperial, a costeira São Petersburgo, do grandioso Museu Nacional do Hermitage, é cidade federal, uma segunda capital. Sua polícia vincula-se ao ministério do Interior em Moscou. A Índia tem tradição de duas capitais, Mumbai é candidata à segunda sede. Em chinês, Pequim e Nanquim significam capitais do norte e sul. A África do Sul tem três capitais. Segundo Filipe Campante, capitais distantes da população associam-se à corrupção e piores governos: Brasília é a 12º mais remota entre 156. É preciso equilibrá-la com uma segunda capital no centro demográfico do Brasil.
Nunca saberemos se haveria abandono e incêndio do Museu Nacional com presidente e ministros dando expediente nas proximidades. Mas é emblemático que Juscelino Kubitschek tenha sido o último presidente a visitá-lo. Nenhum ministro esteve nos 200 anos do mais antigo e importante museu brasileiro em junho de 2018. O olho do dono engorda o boi. Ninguém menos que a princesa Isabel recebeu no Rio o meteorito Bendegó, sobrevivente do incêndio na morada de Dom Pedro II. Não é sábio gerir de Brasília o Rio, com seus hospitais, empresas, institutos, universidades, museus e tropas federais. A União deve controlar diretamente seu incalculável patrimônio na cidade.
O descalabro na indiscutível vitrine do Brasil apequena o país no mundo, como ilustrou a repercussão global de perplexidade com a tragédia do Museu Nacional. O Rio é uma cidade organicamente nacional, como as capitais europeias em que foi inspirada. Devolver-lhe status federal curaria a síndrome de Nero do Brasil, cujo descaso faz arder sua Roma, mãe de todas as cidades-capitais.
Igor Abdalla é diplomata, doutor em ciência política pelo Instituto Europeu, na Itália, e professor licenciado da PUC-Rio. As opiniões são pessoais, não refletem posições do Ministério das Relações Exteriores.