Desde 2014 o Supremo Tribunal Federal tem imposto uma agenda de moralização, incumbindo-se de sanear o sistema político, expurgar a corrupção, salvar a pátria. Para implementar essa agenda, adotou uma série de decisões extravagantes, ampliadoras do poder e do alcance do tribunal nos demais Poderes da República. Tudo sob a justificativa de que o combate ao crime assim exige, de que a sociedade assim espera. Não é possível precisar o momento exato em que tudo começou. Talvez fosse uma força latente, há muito tempo presente, aguardando por uma oportunidade. O cavalo selado veio a galope com o nome de Operação Lava Jato.
A decisão que, se não marca o início dessa agenda, é emblemática de seu propósito, é a novidadeira possibilidade de suspensão de exercício de mandato do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, em 2016. Oportunamente adotada após o todo o trâmite de impeachment de Dilma Rousseff, a decisão do Supremo estabeleceu um padrão de ingerência judicial no Legislativo sem precedentes.
Ela se soma à prisão do senador Delcídio do Amaral, ao impedimento de posse de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro indicado por uma presidente da República, ao quase afastamento do senador Renan Calheiros, à mudança de regras de financiamento de campanha, à retroatividade da Lei da Ficha Limpa e à execução provisória da pena após a condenação em segunda instância.
Essas decisões extravagantes mostraram-se, também, excepcionais. O senador Aécio Neves, em idêntica situação à de Delcídio do Amaral, não foi preso. A última palavra sobre a suspensão do mandado de Aécio foi dada pelo Supremo ao Parlamento, decisão diferente à adotada com Cunha. E o status de ministros criados sob medida para investigados do governo Michel Temer não geraram impedimento judicial.
Todo mundo sabe que a posição do Supremo sobre as prisões a partir da segunda instância mudou, já no início de 2017
Essa mudança pode indicar o desgaste da agenda ou a conclusão de seu propósito. Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, tem perdido reiteradamente na 2ª Turma. A verdade é que a operação, no tribunal, é um fiasco. É nesse contexto que é preciso analisar o julgamento do habeas corpus preventivo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não bastasse a Constituição ser muito clara no seu texto, dispondo que ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado, o Código de Processo Penal é ainda mais direto e pontua que ninguém pode ser preso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Porém, a agenda de moralização impôs que esse direito deveria acabar. E acabou assim de supetão, com um tribunal dividido em seis a cinco e a possibilidade de prisão após segunda instância.
Mas, tal como nos demais casos extravagantes, esse também já passou. Todo mundo sabe que a posição do Supremo mudou, já no início de 2017. O ministro Gilmar Mendes, antes a favor da execução provisória da pena, viu-se convencido pelo outro argumento, um meio-termo criado pelo ministro Dias Toffoli para executar a pena apenas após julgamento de recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça.
Desde então, dezenas de liminares têm sido concedidas monocraticamente pelos ministros, para impedir a execução provisória da pena. Assim fizeram Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Marco Aurelio Mello e o próprio Gilmar Mendes. Duas ações declaratórias de constitucionalidade, ADC 43 e ADC 44, aguardam data de julgamento para concretizar essa mudança já sabida e anunciada pelo tribunal.
Em uma manobra sem precedentes, a ministra-presidente Cármen Lúcia disse que não daria oportunidade para o plenário mudar a posição sobre o tema ao não pautar os casos.
A agenda de moralização resiste. Haveria algum propósito ainda a ser atingido? Nesse meio tempo, Lula foi condenado em segunda instância e seu habeas corpus chegou ao Supremo. Para não deixar o caso na 2ª Turma, formada por Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski (todos contrários à antecipação do cumprimento da pena), o ministro-relator Edson Fachin decidiu levar o caso diretamente ao plenário, para que os 11 ministros pudessem apreciar a questão da prisão em segunda instância do ex-presidente. Afinal, apenas o plenário tem poder para decidir sobre questões de constitucionalidade.
O processo foi pautado e as pressões são enormes. A negação do habeas corpus de Lula vira o grande símbolo para a moralização da política: é o probo contra o corrupto; o juiz contra a impunidade.
Mesmo sendo explícita a mudança de entendimento na matéria, a ministra Rosa Weber decidiu não votar como havia votado anteriormente e como deverá votar nas ADCs. Decide seguir a posição de plenário que não mais existe. Twitter de general, protesto na rua, habeas corpus negado. Propósito alcançado?
A agenda de moralização do Supremo foi e é, sem dúvidas, o abre-alas de um retrocesso democrático.
Eloísa Machado de Almeidaé doutora em direito e professora de direito constitucional da FGV Direito SP