A lei na Polônia que proíbe que um cidadão discuta a cumplicidade da Polônia nas atrocidades cometidas pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial trata-se de uma tentativa de monopolizar a retórica sobre um tema ainda não esgotado na Europa, mesmo sob a capa de combate à discriminação. Esta é uma entre várias leis polêmicas tolhendo a liberdade de expressão no continente europeu.
As atrocidades cometidas pelo regime nazista, mas também no contexto geral da Segunda Guerra, foram tão impactantes ao ponto de se criar marcos fundamentais civilizatórios, como o direito humanitário internacional e a própria noção contemporânea dos direitos humanos. A vigorosa Convenção da ONU contra a Discriminação Racial (Icerd, na sigla em inglês), visando em grande parte evitar a reincidência do antissemitismo foi adotada em 1965, antes mesmo dos pactos da ONU, sobre direitos civis e políticos, e sobre direitos econômicos, sociais e culturais.
Para entender a polêmica em torno do tema, temos que voltar ao impasse nas negociações da Icerd sobre o conflito entre o combate ao racismo e a liberdade de expressão. A convenção, em seu artigo 4° , não impõe uma obrigação absoluta aos Estados partes de coibir expressões supostamente racistas. Há uma cláusula chamada “due regard”, que tempera a proteção contra o racismo com outros direitos, inclusive a liberdade de expressão. Essa limitação foi fruto de um acordo entre os negociadores, ante a resistência dos Estados Unidos em limitar a liberdade de expressão. Tal conflito tornou-se paradigmático na política e no direito internacional, através da metáfora bastante imperfeita da “balança” que pondera os dois fatores em conflito. Mas como metáforas e metonímias são inevitáveis em qualquer linguagem, esta figura ganhou força e é hoje é onipresente em posições políticas e julgados sobre o tema. A figura da balança reflete uma característica bastante europeia de ponderação de direitos, enquanto a abordagem estadunidense prega o famoso “mercado livre de ideias”, com quase nenhuma restrição da liberdade de expressão.
O “fiel da balança”, influenciado pelos novos ventos do pós-Guerra Fria, passou a pender para o prato da liberdade de expressão, pesando mais a tese da suposta vitória do capitalismo. Por exemplo, durante as negociações das duas Declarações de Durban, (de 2001 , e sua revisão em 2009 ) sobre o tema de racismo, claramente polarizadas, o bloco ocidental demonstrou sua força ao fazer subir o tom da liberdade de expressão nos respectivos textos. O Brasil costurou um acordo para que se preservasse no texto final de 2009 o padrão mínimo de liberdade de expressão do Pacto de Direitos Civis e Políticos. São tempos em que, a xenofobia, a islamofobia, e o combate ao terrorismo foram incorporados ao conteúdo original de racismo da década de 1960.
Ao mesmo tempo, no Conselho de Direitos Humanos, o bloco islâmico passava resoluções sobre a chamada “difamação das religiões” visando proibições gerais de se criticar o Islã. À época, o presidente dos EUA Barack Obama, em seu Discurso do Cairo de 2009, deu uma tacada de soft-power ao cunhar a expressão “estereotipagem negativa do Islã” e conseguiu frear essa iniciativa em Genebra, ao promover outras medidas para combater a Islamofobia que não a criminalização de expressões críticas.
Naturalmente, há sempre uma disputa política sobre a narrativa de qualquer atrocidade. Mas desde que não haja incitação a uma nova onda de violência, as opiniões de uma pessoa não podem ser tolhidas
No campo jurídico houve também uma mudança notável. Nas décadas de 1980 e 1990, peticionários que reclamavam violação da liberdade de expressão por haver, por exemplo, imprimido panfletos incitando à expulsão de não brancos (Caso Glimmerveen v. Países Baixos, 1979) ou negado a existência das câmaras de gás (Caso Faurisson v. França, 1996), tinham seus pleitos rejeitados sumariamente pelos órgãos internacionais, sob o argumento do abuso de direitos. O político francês conservador Jean-Marie Le Pen também teve seu pleito frustrado ao querer defender seu discurso racista por meio da liberdade de expressão ante a CtEDH (Corte Europeia de Direitos Humanos), em 2012.
Contudo, essa abordagem da corte foi criticada por vários especialistas, sob o argumento de que a liberdade de expressão é o próprio antídoto contra a discriminação racial, incluindo o neonazismo. Alega-se que junto a um discurso com certo teor racista, ventilam-se descontentamentos da população sobre temas de interesse geral, e que é melhor que isso seja discutido que reprimido. Em todo caso, até mesmo o Comitê CERD, que monitora o cumprimento da Convenção ICERD, da ONU, a nível global, orienta que a proteção contra a discriminação não pode diminuir o padrão de proteção conferido à liberdade de expressão de outros tratados direitos humanos. A moeda de troca nessa nova abordagem é o fortalecimento de medidas promocionais de igualdade racial, reafirmadas como uma obrigação estatal, mas ainda com poucos parâmetros práticos para mensurar seus efeitos práticos. Nesse contexto, a Alemanha liberou em 2016 a reimpressão do Mein Kampf, livro em que Adolf Hitler expõe as teses nazistas, que virou best-seller em 2017, devido à enorme curiosidade do público alemão.
Desta maneira, o projeto de lei polonês dificilmente passará por um crivo jurídico internacional pelo simples fato de que proibições gerais extrapolam o direito/dever do Estado em combater o racismo. Vários julgados recentes privilegiam uma análise de situações concretas que potencialmente gerem violência ou desordem. A CtEDH, em 2015, julgou que, mesmo que o polêmico político turco Doğu Perinçek tenha questionando o “genocídio armênio”, a pouca probabilidade de seus livros causarem uma desordem social ou outra atrocidade não justifica sua condenação por racismo pela Suíça. Mas um discurso claramente antissemita disfarçado de humor, como no exemplo dos shows do humorista francês M’Bala M’Bala, com um claro impacto no seu público, é questionável, fazendo com que a CtEDH rejeitasse de imediato a análise do caso, sem sequer considerar se, de fato, houve ou não uma violação da liberdade de expressão contra o humorista.
Naturalmente, há sempre uma disputa política sobre a narrativa de qualquer atrocidade. Mas desde que não haja incitação a uma nova onda de violência, as opiniões de uma pessoa não podem ser tolhidas. Sobre este tema, a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos julgou, no fim de 2017, que a punição da oposicionista ruandesa Victoire Ingabire, por haver declarado que os Hutus também mereciam um memorial, além dos Tutsis, é contrária à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Comparando este caso ao exemplo polonês, vê-se claramente que o Executivo e o Parlamento deste país almejam manter o monopólio da retórica sobre o papel da Polônia no Holocausto, o que é claramente contrário aos parâmetros internacionais de hoje.
A pressão sentida pelo presidente polonês Andrzej Duda, inclusive de aliados, como os Estados Unidos, o fez enviar a lei já promulgada à suprema corte polonesa para uma avaliação mais técnica, em uma clara ação de redução de danos políticos.
Paulo de Tarso Lugon Arantes é advogado e pesquisador em discriminação e igualdade racial pela Universidade de Leuven, Bélgica. Tem vasta experiência com os mecanismos de proteção de direitos humanos das Nações Unidas.