Os dados que têm vindo a público sobre a situação das barragens de mineração no país compõem um cenário desconcertante da fragilidade da ANM, a Agência Nacional de Mineração . O órgão é responsável pela fiscalização de 790 barragens de rejeito no país, das quais 139 sob titularidade da Vale S.A. Em 2017, contando apenas com 35 fiscais, a agência deixou de fiscalizar 73% das barragens. Além disso, falta combustível para abastecer os carros dos fiscais e até para pagar contas de luz das superintendências nos estados.
O orçamento público destinado ao antigo Departamento Nacional de Produção Mineral, agora ANM, e o que dele é gasto para a fiscalização da atividade de mineração, é mais um fator a ser considerado na cadeia de responsabilidades pelo rompimento de barragem da Vale e a tragédia de Brumadinho.
O orçamento público é fruto de decisões políticas que expressam prioridades estabelecidas pelo governo, mas também, em alguns casos, intenções não explícitas. No caso da mineração no Brasil, o interesse do governo é marcado, historicamente, pela geração de superávits comerciais a qualquer custo. Para tanto, a grande mineração sempre foi protegida: da tributação, da regulação, da fiscalização. O que temos hoje é uma carga tributária baixíssima para o setor, repleta de isenções; uma regulação defasada (o Código de Mineração ainda é o de 1967) e uma fiscalização, como vemos, criminosa.
A fragilidade do orçamento da ANM, portanto, deve ser vista como uma manifestação da deliberada falta de interesse político em estruturar um órgão com capacidade técnica para efetivamente regular e fiscalizar o setor, e com inteligência estratégica pensar o lugar da mineração na economia brasileira.
Um raio X do Orçamento da ANM
Ainda que o orçamento autorizado do órgão tenha tido algum aumento desde a tragédia-crime de Mariana (2015), como mostra o gráfico abaixo, o ganho não se reverte em maiores valores efetivamente gastos.
Há que se considerar, de partida, que mesmo os orçamentos autorizados no patamar de R$ 500 milhões a R$ 600 milhões significam muito pouco para um órgão que tem a atribuição de executar a política mineral de um país gigante, que extrai mais de 200 substâncias minerais. Algumas das quais, como o ferro, a bauxita, o cobre, colocam o país na lista dos maiores países mineradores do mundo, em toneladas extraídas e em rejeitos gerados.

Já os gastos efetivos, são muito piores. Em 2015, foram gastos em termos reais apenas R$ 325 milhões e em 2018, ainda menos, R$ 298 milhões. Isto considerando todas as despesas do órgão: pagamento de pessoal e seus encargos, manutenção e investimentos em sua estrutura, e execução de ações “na ponta”, entre elas, a fiscalização de barragens.
A austeridade fiscal é mais um componente do que estamos vendo acontecer em Brumadinho. Isso fica claro quando vemos no gráfico acima que a execução bem abaixo dos valores autorizados tem sido resultado do aprisionamento de recursos na forma de “Reserva de Contingência”. O objetivo dessa prática é fazer economia de caixa para reduzir o tamanho do deficit fiscal e, indiretamente, garantir o cumprimento do “teto de gastos”.
Para as despesas com pessoal, o orçamento autorizado em 2015, em termos reais, foi de R$ 279 milhões. Em 2019, o orçamento permanece praticamente o mesmo, R$ 281 milhões. A deficiência de pessoal qualificado, que foi uma lição duramente aprendida com Mariana, não serviu para mudar este quadro.
Quando analisamos de perto o problema dos recursos humanos, vemos que ele vai ainda além do número de funcionários ou do orçamento gasto com pessoal. Como alerta Bruno Milanez , quando o presidente Michel Temer assumiu o governo em 2016, todo o segundo escalão da área de mineração ocupado por cargos comissionados veio dos quadros da Vale, ação conhecida como “porta giratória” e frequentemente associada com práticas de corrupção. Nada mais sintomático das relações perigosas entre Estado e mineração, cujo sobrenome no Brasil é a Vale.
Para as despesas correntes, os gastos efetivos não ultrapassam a casa dos R$ 50 milhões por ano, mais exatamente, R$ 52 milhões em 2018.
Orçamento para fiscalização
O quadro é ainda mais crítico quando avaliamos o orçamento disponível e gasto com ações chamadas finalísticas, entre elas, a fiscalização da atividade mineral, o que inclui a fiscalização de barragens. Cabe dizer que tais gastos são em parte realizados pela sede da ANM em Brasília e, em parte, gastos diretamente pelas superintendências nos estados.
O orçamento para a fiscalização das minas e suas barragens está concentrado na ação orçamentária intitulada “Outorga, Fiscalização e Regulação da Pesquisa e Produção Mineral”, que resume toda a atuação finalística ligada à política mineral brasileira. Também faz parte dessa ação a fiscalização da produção e da arrecadação.
Em 2018, foram gastos R$ 7,7 milhões para toda essa ação orçamentária, tanto pela sede como pelas superintendências. Dentro dessa ação, foram registrados gastos de R$ 4,9 milhões para “fiscalização mineral em áreas tituladas”, o que inclui a fiscalização das barragens.
Repetindo: segundo os dados orçamentários do governo federal, foram gastos com a fiscalização da atividade mineral nos 27 estados brasileiros e no Distrito Federal apenas R$ 4,9 milhões em 2018.
O orçamento da Superintendência da ANM em Minas Gerais segue a mesma dinâmica de irrelevância e desmonte do órgão. Em 2018, em termos reais, o valor autorizado foi de R$ 285 mil e o valor pago de R$ 268 mil. Valores muito abaixo dos observados entre 2016 e 2017.
Para a atividade específica de “Fiscalização mineral em áreas tituladas”, foram gastos pela Superintendência da ANM em Minas Gerais o valor ínfimo de R$ 163 mil reais. Este é o nível mais detalhado de agregação das ações disponibilizadas para o monitoramento do orçamento federal, chamado Plano Orçamentário.
O orçamento público da ANM evidencia, assim, a falta de compromisso político com a regulação e fiscalização de um setor tão complexo e perigoso como a mineração. Essa falta de compromisso é um indicador da captura do Estado pelo setor mineral dominado por transacionais, sendo a Vale S.A a mais poderosa e influente empresa privada por dentro das estruturas do Estado brasileiro.
Repensar a mineração no Brasil deve passar, também, por uma mudança profunda na relação entre Estado e interesse privado, assim como pelo fim da austeridade fiscal.
Alessandra Cardosoé assessora política do Inesc, Instituto de Estudos Socioeconômicos