Às vésperas da data que marca a luta pela descriminalização do aborto na América Latina, o 28 de setembro, é preciso olhar para como a direita vem atuando sobre esse tema no poder Legislativo. Parlamentares desse espectro político recrudescem o discurso sobre diversas questões relacionadas a gênero e direitos das mulheres. Desde fevereiro de 2019, foram apresentados 28 projetos de lei na Câmara que mencionam a palavra aborto. Desses, 12 buscam restringir os direitos à interrupção voluntária da gravidez. É o maior número de de projetos de lei relacionados a aborto apresentados em um ano na Casa desde 1949, segundo levantamento que realizamos . Vale ressaltar que nenhum deles traz a proposta de ampliar as situações no país em que o aborto não é criminalizado.
É o PSL o partido lidera as propostas contrárias ao aborto: apresentou seis. Não surpreende. Abertamente contrário à legalização do aborto, o maior líder da legenda, o presidente Jair Bolsonaro, já afirmou que caso o Congresso aprove uma lei que facilite a interrupção da gravidez, ele vai vetar.
A deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ) é a autora do maior número de propostas do partido com o viés contrário ao aborto: três. Tonietto é uma advogada católica que fez da criminalização do aborto a principal pauta de sua plataforma de campanha em 2018. Na justificativa do PL 2893/2019, ela propõe que se suprima o direito garantido no artigo 128 do Código Penal – de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro ou quando há risco de vida à mulher. A revogação do artigo é uma argumentação, portanto, sobre como a vida do feto deve se sobrepor à vida da mulher. O texto do PL traz depoimentos de mulheres que nasceram após casos de gravidez decorrente de violência sexual. “O autor do estupro ao menos poupou a vida da mulher – senão ela não estaria grávida. Pergunta que não quer calar: é justo que se faça com a criança o que nem sequer o agressor ousou fazer com a mãe: matá-la?”, cita o PL, em tom que flerta com a violência psicológica.
A investida contra os direitos das mulheres no Legislativo e o moralismo fundamentalista são explícitos nesse projeto e em outros. Mas conta com outras formas de ação, que passam pelo confronto direto entre Legislativo e Judiciário. No momento, espera-se pela data de retomada da pauta do aborto no Supremo Tribunal Federal. A corte realizou, em agosto de 2018, duas audiências públicas sobre o tema, após a ministra Rosa Weber se tornar relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, que propõe a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação e que sofre fortes críticas dos parlamentares antiaborto.
A investida contra o direito à interrupção voluntária da gravidez sempre foi um desafio para as mulheres desde o Código Penal, em 1949
Naqueles dias, apenas as organizações da sociedade civil e institutos de pesquisa ou órgãos públicos que trabalham como o tema na perspectiva de especialistas estiveram aptos a expor argumentos nas sessões. Mas com os ânimos exaltados, Chris Tonietto confrontou o ministro do Supremo Roberto Barroso, no primeiro dia das audiências, durante uma palestra no Brasil Fórum Rio, no Museu do Amanhã, Rio de Janeiro. O episódio foi filmado e exposto orgulhosamente página do Facebook da deputada.
As variações de argumento para barrar e retroceder os direitos reprodutivos são muitas. Outro parlamentar do Rio apresentou dois projetos contrários ao aborto apenas neste ano. O PL 261/2019, de autoria do deputado Márcio Labre (PSL-RJ), visava proibir que médicos prescrevam métodos contraceptivos, classificados por ele como “microabortivos”. O veto descrito no projeto valeria para métodos como a pílula do dia seguinte, pílula de progestógeno (minipílula) e até mesmo o DIU (dispositivo intrauterino). Depois da repercussão negativa e da pressão dos parlamentares, o deputado retirou o projeto de lei . Em 2015, o agora ex-deputado Eduardo Cunha já havia experimentado a fúria das mulheres quando tentou emplacar projeto de lei que também colocava em xeque a pílula do dia seguinte, com o PL 5069/2013. Em campanha, elas bradavam: “Pílula fica, Cunha sai”.
O presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, o deputado Diego Garcia (Pode-PR), o ex-vice líder do governo na Câmara dos Deputados, o deputado Capitão Augusto (PR-SP) e ainda Filipe Barros (PSL-PR) também apresentaram nesta legislatura projetos de lei contrários ao aborto.
A investida contra o direito à interrupção voluntária da gravidez sempre foi um desafio para as mulheres desde o Código Penal, em 1949. O que não impede que o aborto continue sendo realizado no país, mas reforça as situações de risco às quais se expõem àquelas que não contam com recursos para acesso a clínicas com alguma estrutura. Pelo menos uma em cada cinco mulheres fará ao menos um aborto ilegal ao final da vida reprodutiva, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (2016).
Mas como se vê no levantamento de dados, na direita que ocupa o Legislativo, e no PSL com mais intensidade, essa realidade que é uma questão de saúde pública parece não ser levada em consideração. Em 2019, vemos uma intensificação dos projetos de lei que buscam punir e retirar direitos já garantidos. Ainda sem centralidade na pauta política do Congresso e das votações nas comissões desde o começo do governo Bolsonaro, a movimentação e produção parlamentar investigadas a partir do levantamento e da análise de dados públicos mostra que o assunto está na agenda da extrema direita, e dificilmente não virá à tona em momento de maior evidência do debate público.
Vitória Régia é jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, repórter da revista Gênero e Número e editora da revista Capitolina.
Flávia Bozza Martins é cientista social pela Universidade Federal do Paraná, onde é professora, doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ e analista de dados na Gênero e Número.