A ideia de selecionar cidadãos aleatoriamente para tomar decisões políticas é antiga. Ela remonta ao século de Péricles e era considerada a essência da democracia. Como dizia Aristóteles, ao contrário da eleição, que normalmente é influenciada pelo poder ou pela riqueza das pessoas, no sorteio, qualquer cidadão pode ser escolhido para exercer uma função pública. Esse mecanismo, amplamente utilizado na época de ouro ateniense, acabou desaparecendo. Mas eis que o sorteio está de volta. Reinventado nas últimas décadas, ele vem revolucionando as democracias contemporâneas, apesar de ainda ser pouco conhecido no Brasil.
Neste momento, por exemplo, a França instituiu uma Convenção Cidadã , formada por 150 pessoas sorteadas, com o intuito de propor medidas para iniciar a transição energética do país. Fruto das reivindicações dos coletes amarelos e de uma guinada do governo para ampliar a participação, a Convenção conta com a promessa do presidente Macron de adotar as propostas finais na sua administração ou de submetê-las ao parlamento ou a referendo. A experiência francesa é apenas mais uma dentre milhares de iniciativas ao redor do mundo que comprovam um verdadeiro boom do sorteio.
O grande mérito das iniciativas com sorteio é trazer para os espaços de deliberação o cidadão comum, não contaminado pelas redes de interesse
Como esse mecanismo funciona? A ideia é constituir uma amostra representativa da sociedade, como é feito nas pesquisas de opinião, mas fazer com que essas pessoas possam se reunir e deliberar sobre um assunto. Ao longo dos anos, vem sendo consolidada toda uma metodologia de trabalho em torno desses espaços públicos, onde o papel dos moderadores é fundamental. Durante o procedimento, eles devem observar a distribuição equânime de tempo, tentar solucionar as dúvidas dos cidadãos, fazer com que eles não percam o foco do tema proposto etc.. Afinal, a isenção da equipe organizadora é fundamental, e a dinâmica proposta pode influenciar diretamente nos resultados.
No caso da França, serão sete sessões, nos fins de semana, durante as quais os cidadãos sorteados ouvirão opiniões contraditórias de pesquisadores, de organizações internacionais e de membros da sociedade civil, para, depois, com o auxílio de um comitê organizador, proporem medidas para superar a crise ecológica.
O grande mérito das iniciativas com sorteio é trazer para os espaços de deliberação o cidadão comum, não contaminado pelas redes de interesse. O método da amostra — respeitando critérios de gênero, idade, raça e classe social — traz uma legitimidade suplementar, fazendo com que uma miniatura da sociedade possa formar uma opinião pública esclarecida. Cada vez mais, esses “minipúblicos” (tal como as experiências com sorteio vêm sendo denominadas) vão além de um papel consultivo, ganhando poder de decisão.
Quando a ideia surgiu, houve uma enorme desconfiança. As pessoas são capazes de compreender questões complexas? Não se trata de um mecanismo tecnicista que encobre a mobilização social? Seria possível ir além de pequenos experimentos e propor mudanças estruturais? Essas questões são válidas, mas as iniciativas das últimas décadas vêm surpreendendo até mesmo os mais céticos.
Como exemplo, podemos citar o comitê que emite parecer sobre questões de ciência e tecnologia na Dinamarca; o orçamento participativo de Berlim, que distribuiu 500 mil euros para que um grupo de cidadãos pudesse deliberar sobre o destino desse dinheiro; a pesquisa deliberativa na Austrália, que reuniu 344 pessoas sorteadas para debater sobre a relação entre as populações indígenas (em especial os aborígenes) e não-indígenas; a seleção de candidatos para concorrer a cargos eletivos na Grécia e no México; a reforma constitucional da Irlanda, feita por 33 políticos e 66 cidadãos sorteados; sem contar as centenas de experiências com políticas públicas na Europa, Ásia e Estados Unidos. Todas essas iniciativas revelam o potencial e o dinamismo dessa ferramenta que vem se tornando cada vez mais comum.
No caso da França, é importante destacar que o uso do sorteio foi defendido não somente por Macron, ainda na campanha presidencial, como também por outros quatro candidatos de diferentes posições no espectro político. O resultado da Convenção sobre o meio ambiente sairá em abril e a esperança é de que haja respostas legítimas para um tema complexo e urgente. Afinal, diante de uma crise de representatividade, ninguém pode negar que a inovação seja necessária.
André Rubião é doutor em ciência política pela Universidade Paris 8 e professor da Faculdade de Direito Milton Campos