A democracia brasileira encontra-se, no momento, na situação de Santiago Nasar, o personagem do conhecido romance policial de Gabriel García Márquez, “Crônica de uma morte anunciada”, publicado em 1981. Para quem não conhece ou não se lembra do enredo, os irmãos Vicario decidem assassinar Santiago Nasar por, supostamente, ter mantido relações sexuais com a irmã deles, Ángela Vicario, antes que esta se casasse com o abastado Bayardo Sán Roman. Decepcionado pelo matrimônio com uma mulher que já não era virgem, Bayardo devolve Ángela à casa dos pais. Mesmo anunciado com antecedência, o assassinato a facadas do desavisado Santiago Nasar é concretizado, sem que ninguém, no povoado caribenho onde o romance é ambientado, lograsse evitar o desfecho trágico.
A metáfora da morte anunciada vem sendo usada no Brasil para referir-se aos processos de fritura de ministros antes da exoneração definitiva. O próprio vice-presidente Mourão se valeu da imagem para referir-se à saída do desditoso ministro da Educação Ricardo Vélez após apenas três meses de governo.
Mais que ministros é a própria democracia que parece ser o Santiago Nasar da crônica política brasileira contemporânea. E mais que anunciado, seu assassinato se encontra em pleno curso. O juramento de morte já estava no ar na campanha presidencial de 2018, quando o então candidato Jair Bolsonaro lançou as bases da guinada autoritária que vem implementando em seu governo. Durante a campanha eleitoral e ainda restrito ao nível discursivo e performático, o plano homicida se assentava em ao menos quatro frentes interconectadas: o ultraliberalismo, a construção de um novo regime de verdade, o desmonte da “velha política” e a apologia da violência.
Com o discurso de campanha ultraliberal, corporificado e avalizado pelo aliado feito ministro Paulo Guedes, Bolsonaro avisava ao empresariado que seu governo escancararia de vez o acesso do capital não apenas aos cofres públicos mas aos bens comuns sob a guarda do Estado. Entram aqui tanto privatizações e concessões de empresas públicas (mesmo as muito lucrativas) e serviços prestados ou regulados pelo Estado como também bens intangíveis como a qualidade do meio ambiente, o patrimônio histórico, étnico e cultural ou até mesmo os direitos trabalhistas e a segurança do trabalho e do trânsito.
A velocidade com que essa primeira frente de assassinato da democracia vem sendo implementada é assombrosa. Em poucos meses, organismos federais inteiros, particularmente aqueles vinculados aos ministérios da Economia, da Infraestrutura e do Meio Ambiente e à Secretária Especial da Cultura vêm se dedicando a dilapidar o patrimônio público por meio de privatizações e concessões a preços de liquidação. Paralelamente, visando abrir novos espaços para a acumulação de capital ou simplesmente favorecer amigos ( vide caso do Iphan ), desarticulam-se os instrumentos construídos ao longo da redemocratização para garantir a preservação do patrimônio cultural material e imaterial, a proteção das reservas indígenas e dos povos tradicionais e o respeito ao meio ambiente.
O Estado democrático de direito abre mão, por deliberada omissão, de fiscalizar o cumprimento de leis que ele mesmo regulamentou. Torna-se, assim, um Estado menos democrático e menos de direito e mais subordinado ao arbítrio do presidente, de seus ministros, e aos interesses de seus amigos e parentes.
Bolsonaro conseguiu primeiro atrair a força transformadora da ‘velha política’ presente no movimento anticorrupção para, depois, descartar esse movimento
A construção de um novo regime de verdade, a autoverdade como bem cunhou a jornalista Eliane Brum , serviu-se na campanha eleitoral da farta distribuição de notícias falsas e na descredibilização das arenas estabelecidas para as disputas em torno da verdade, quais sejam, a justiça, a mídia e a ciência. Sob esse aspecto, a extrema direita brasileira não inovou, ela segue o padrão da direita global que, com suas teorias conspiratórias e ridicularização da mídia, chamada por exemplo, de “presstitute” pela direita indiana ou “Lügenpresse” (imprensa mentirosa) pela direita alemã, busca desestabilizar o regime de verdade democrático. O objetivo almejado não é, obviamente, assegurar a liberdade e a pluralidade de opiniões, mas precisamente o oposto: desautorizar os instrumentos por meio dos quais o público poderia identificar o caráter fantasioso de notícias divulgadas com o mero objetivo de manipulação.
Esse expediente foi institucionalizado no governo Bolsonaro no chamado Gabinete do Ódio e por meio da divulgação de informação sem qualquer fundamento nas mídias sociais por representantes diretos do governo e seus aliados políticos — fantasias que vão do golden shower à cloroquina.
O golpe à democracia que essa prática significa salta aos olhos. Afinal, as instituições democráticas representam, ao menos em sua forma ideal, cristalizações da opinião e da vontade política formadas à luz do princípio da transparência e do acesso às informações relevantes a todos os cidadãos. Informações deliberadamente distorcidas corrompem a competência e livre-arbítrio dos cidadãos e os tornam mera massa de manobra dos protagonistas da arena política, qual seja, o ominoso gado das disputas verbais na internet.
A crítica à velha política assumiu na campanha bolsonarista de 2018 o caráter genérico da condenação a “tudo isso que está aí”, incluindo-se aqui a própria institucionalidade democrática. Na campanha eleitoral, essa referência vaga permitiu atrair para as hostes direitistas tanto eleitores compreensivelmente insatisfeitos com a corrupção desenfreada e os descalabros da política estabelecida, quanto saudosistas do passado autoritário. Para esses últimos, mais do que combater os vícios políticos que a democracia não logrou eliminar, o que há que se eliminar é a própria democracia. Pensam que é mais eficiente encarnar a soberania popular na figura de um líder messiânico capaz de implementar a vontade popular sem mediações dos procedimentos legislativos ou jurídicos.
O governo Bolsonaro conseguiu primeiro atrair e canibalizar a força transformadora da “velha política” presente no movimento anticorrupção para, depois, descartar esse movimento, fato consumado com a ruptura com a figura-símbolo do lavajatismo, o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Restou, a seu lado, o segundo grupo de inimigos da “velha política”, os saudosistas do autoritarismo, cujos planos de destruição da democracia são alimentados pelo aval público do próprio presidente da República em suas estarrecedoras aparições públicas. Para os saudosistas do autoritarismo, pouco importa se Bolsonaro, para se manter no poder, abraçou de corpo e alma o Centrão, a síntese mais acabada da velha política. Pensam que o líder supremo saberá, no momento adequado, se livrar dos aliados de conveniência, para se impor como poder único e soberano. E o mais preocupante é que, provavelmente, estejam certos nessa avaliação.
Por último, o fim da democracia foi anunciado na campanha de 2018 com a apologia da violência que não se restringia à chamada violência legítima controlada pelo Estado. Nos discursos da campanha eleitoral de Bolsonaro, o armamento da população civil devia permitir que “pessoas e famílias de bem“ pudessem se proteger contra todos aqueles que lhes impingissem injustiças e sofrimento. A apologia da violência observada na campanha eleitoral abriu as portas para a banalização das violações dos direitos humanos de quem supostamente não conduz uma “vida direita”. Também aqui o bolsonarismo foi capaz de canibalizar as ansiedades e medos da população diante da criminalidade, transformando-os em instrumento de dominação política. Hoje, a ameaça velada ou explícita de uso da força das armas, seja por civis, como os 300 acampados em Brasília, por policiais amotinados, ou pelas Forças Armadas funciona como escudo que blinda Bolsonaro, seus filhos e amigos de ações do Congresso e da Justiça capazes de pôr limites a seus arroubos autoritários.
Mais que um juramento de morte, a combinação dessas quatro frentes de ataque vem assassinando, efetivamente, a democracia. Parte das forças progressistas se veem emparedadas neste momento em que a crise sanitária, exponenciada pela inépcia do governo federal, dificulta as mobilizações de rua. Muitos já deram início mesmo a um trabalho de luto para refletir sobre os próprios erros que levaram ao fim da democracia. O momento não é pra isso. Por mais acuados que estejamos, temos que conter, usando os instrumentos democráticos que nos restam, a família Vicario. Gabriel García Márquez escreveu seu romance para servir de advertência e não para que fosse replicado na vida política.
Sérgio Costa é professor titular de sociologia da FU Berlin, Alemanha. Seu livro mais recente é “A port in global capitalism”, de 2019, publicado pela editora Routledge em co-autoria com Guilherme Leite Gonçalves.