Quando um drone invade a janela de um quarto de hotel e interrompe uma discussão saia justa em “Força Maior” (2014) é um dos raros momentos estruturais de roteiro em que parece impossível não rir. Mas o filme de Ruben Östlund, vencedor do Prêmio do Júri na Mostra Um Certo Olhar no 67o Festival de Cannes, entende dessa brincadeira que se tornou óbvia de se deduzir neste século: ninguém sabe usar imagens de drone no cinema. Isso porque a simplicidade de se captar imagens aéreas sem a burocracia de um helicóptero embriaga com facilidade qualquer cineasta.
Mas alguns filmes têm se saído muito bem nessa história ao desistir da tarefa insalubre de encaixar a imagem de maneira “secreta” aos olhos espectadores, transformando esses objetos voadores em verdadeiros personagens.
É o caso do já citado “Força Maior”, que desde o começo vai deixando claro que esse drone existe na paisagem do filme — desenvolvimento investido única e exclusivamente para solucionar com humor a tal cena da conversa no quarto de hotel. O filme é sobre um pai que foge para se salvar sozinho quando uma avalanche de neve cai em direção a sua família. Ninguém nem se fere, mas essa tensão de covardia guia a história entre ele e sua esposa. Como espectador, você não consegue mais imaginar de que forma os personagens sairão do climão da conversa, até que, no ápice da saia justa, o tal drone entra pela janela causando alvoroço cômico pela reação dos personagens.
Alguns filmes têm se saído muito bem nessa história ao desistir da tarefa insalubre de encaixar a imagem de maneira “secreta” aos olhos espectadores, transformando esses objetos voadores em verdadeiros personagens
Não me admiraria descobrir, inclusive, que o pernambucano Hilton Lacerda se inspirou nesse filme do Ruben, porque há uma experiência muito semelhante em “Fim de Festa”, seu novo filme que estreou recentemente nos cinemas. Vira e mexe surge uma imagem de drone bisbilhotando a casa de Breno, policial vivido por Irandhir Santos. Exatamente como no filme sueco, essa construção é feita para uma cena específica. Se no primeiro filme para causar humor, no brasileiro para concluir uma tensão social. E em ambos usados de maneira brilhante como narrativa. Lacerda, no entanto, avança na brincadeira ao utilizar o drone em vários momentos distantes do prédio. Podemos supor que há também o drone-imagemdistante de ser personagem? Claro, mas até esse uso parece irônico diante do desfecho que o objeto alcança ao fim da obra.
Em “Os Miseráveis” (2019), de Ladj Ly, filme que dividiu o Prêmio do Júri com “Bacurau” no 72o Festival de Cannes, o drone salta da mera brincadeira estética para entrar na dramaturgia. Acompanhando três policiais que têm como obrigação diária oprimir um bairro periférico de Paris, Ladj avança numa perseguição cuja tensão aumenta ao ponto de culminar em violência física. Quando um dos policiais dispara uma bala de borracha contra uma criança, há um som de hélices cortando o vento logo acima: um drone filmou a ação. A partir de então, o roteiro se transforma para ser uma perseguição ao dono do objeto, atrás de capturarem a imagem que poderia destruir suas carreiras policiais.
É audacioso apostar num gatilho tão contemporâneo, ainda mais pelo tema de seu filme ser uma repressão social vivida há séculos. Ao trazer isso para frente da discussão, Ladj já está falando de uma era de hipervigilância que serviria de belo exemplo às discussões do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.
Essa estrutura de “Os Miseráveis” é a mesma do curta homônimo de Ladj Ly lançado em 2017. De lá para cá, o objeto se popularizou tão mais, que a trama do longa ainda parece autêntica para se discutir a repressão social a partir da observação digital e inescapável — afinal, se soubesse que estavam sendo filmados, aqueles policiais esconderiam seus despreparos em cuidar de uma revolta social (imaginar essa possibilidade fraterna é mesmo uma piada, e o filme fala isso abertamente).
Vale lembrar de “Bacurau” também, que faz as duas coisas: causa tensão social com humor. O drone de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é um disco voador, o olho do alienígena norte-americano sobre a cidadezinha de Bacurau e seu povo. Aí lembra a ideia de “Os Miseráveis”, mas aqui o drone está na mão da violência e não dos violentados. Bacurau, no entanto, não quer ser filmada, monitorada ou controlada. Assim como os policiais de Ladj Ly e Hilton Lacerda, esse olho precisa ser abatido. Ninguém quer seus males vigiados.
Há uma vida útil mais prolongada dos drones como ferramenta audiovisual porque são muito utilizados em reportagens, peças publicitárias e até mesmo em documentários de cinema. Para apresentar uma cidade, por exemplo, pode apostar que a primeira imagem será aérea passeando pelas praças e ruas — e tudo bem, não há porque se opor à ideia de adotar uma solução altamente descritiva do espaço. Mas é no cinema de ficção que isso parece preguiçoso, pois entrega tudo da forma mais genérica possível.
É realmente curioso que filmes queiram usar drones para contar suas histórias. Ainda mais curioso que alguns subvertam a expectativa clássica de se esconder o bastidor da imagem e deixaem a fantasia do cinema aparentemente exposta. São ideias interessantes de acompanhar pela criatividade. Imagens de GoPro, por exemplo, você já viu sendo usada de maneira inteligente em ficções? Bom, mas aí já merece outro pensamento.
Arthur Gadelha é presidente da Aceccine (Associação Cearense de Críticos de Cinema).