No rescaldo político da grande crise de 2020, o Brasil entra nas eleições municipais. Os candidatos se acotovelam em bancadas públicas e redes sociais para ganhar a atenção do eleitor. Se de um lado a eleição municipal é a mais emblemática caricatura da cultura eleitoral do Brasil, como bem traduziu Victor Nunes Leal no livro “Coronelismo, enxada e voto”, do outro, consoante à espiral da insatisfação política, começam a se consolidar experiências marcadas pela ideia de renovação na forma de representação política que se pronunciam por meio de mandatos coletivos . Fenômeno que baralhou as cartas da disputa eleitoral brasileira.
Esses grupos exploram a baixa credibilidade de partidos tradicionais para impulsionar suas candidaturas. Os integrantes de mandatos coletivos falam em desafiar o modelo vigente e veem sua proposta como uma experimentação para mostrar que as formas atuais de representação estão esgotadas. Os discursos dos entusiastas dessa ideia incluem expressões como quebra de hierarquia, gestão compartilhada, horizontalidade e inovação democrática.
Em política, mandato coletivo é uma forma de organizar o pleito eleitoral e o exercício do cargo legislativo, em que um grupo de representantes apresenta-se coletivamente aos votantes, e, caso eleito, se compromete a dividir o poder entre os “coparlamentares”. Enquanto em um mandato tradicional o legislador tem a liberdade de votar de acordo com seus interesses e consciência, no mandato coletivo o legislador define seu posicionamento a partir de decisões coletivas frente às matérias legislativas.
Esses novos adversários expressam tanto a insatisfação política dos dias atuais quanto as demandas dos eleitores que não foram levadas em consideração
O atual debate público sugere que a democracia liberal está em crise. O sistema de representação tradicional está estressado, os partidos políticos estão na defensiva e o trabalho dos parlamentares resulta em baixo desempenho político e administrativo somado a um alto nível de corrupção, além do declínio da capacidade dos principais partidos em representar os novos conflitos e preferências. Esses ingredientes combinados contribuem para a insatisfação com o funcionamento da democracia e, consequentemente, abrem espaço para o surgimento de novos oponentes que procuram aproveitar as brechas deixadas pelos partidos tradicionais.
De onde vem a insatisfação com os partidos? Indiscutivelmente, é a consequência da crise de representação, ou seja, resultado de uma representação inadequada das demandas dos cidadãos no sistema político. Como reação às versões dessa crise, os eleitores abandonam os representantes tradicionais e se voltam para os novos adversários.
Esses adversários não apenas articulam novos conflitos, mas também se voltam explicitamente contra as elites políticas estabelecidas. Em outras palavras, expressam tanto a insatisfação política dos dias atuais quanto as demandas dos eleitores que não foram levadas em consideração, como aquelas associadas às políticas de reparação racial e étnica, desigualdade de gênero, orientação sexual e mudança climática.
Em que pese o cenário de crise, não há motivo para euforia, uma vez que não estamos nada certos de quais serão as consequências da vaga de mandatos coletivos na vida política das democracias liberais, assim como no funcionamento das instituições de mediação política e os desdobramentos que esse mecanismo terá no futuro.
Para além das mudanças performativas, claramente desenrola-se um processo de sobreposição na estrutura das organizações políticas e nos modelos de representação por meio dos mandatos coletivos.
Lembre-se que a primeira experiência bem-sucedida, e que se tornou referência no Brasil, diz respeito ao mandato coletivo filiado ao PTN (atual Podemos) na pequena cidade de Alto Paraíso (GO). No ano de 2016, cinco pessoas inspiradas no movimento ecofederalista fizeram uma campanha de forma coletiva e com 148 votos conquistaram uma cadeira na Câmara de Vereadores da cidade.
Na capital mineira, no ano de 2015, coletivos, partidos e ativistas independentes criaram o Muitas, aliança entre o PCB e o PSOL. Na eleição de 2016, obtiveram 35.756 votos e dois mandatos em regime de covereança. Mais tarde, em 2018, alcançaram duas novas cadeiras, dessa vez na Assembleia Legislativa estadual e na Câmara do Deputados, resultando na criação da Gabinetona, um arranjo institucional que articula os mandatos de quatro mulheres que compartilham equipes e decisões.
Em São Paulo, no ano de 2018, a Bancada Ativista composta por nove codeputados, teve 149.844 votos, sendo a décima candidatura mais votada do estado, além de alcançar o maior financiamento coletivo de campanha eleitoral do país, R$ 72 mil em doações. A Bancada Ativista apresentou seu programa eleitoral vinculado ao PSOL, tratando de temas relacionado aos direitos humanos, questões identitárias e agenda ambiental.
O Juntas, grupo de cinco mulheres ativistas filiadas ao PSOL foi eleito para a Assembleia Legislativa do estado de Pernambuco, também em 2018. Realizando uma campanha concentrada em temas do feminismo, alcançou 39.175 votos, conquistando a última vaga da Casa Joaquim Nabuco.
No pleito eleitoral que decorre neste ano de 2020, a modalidade de mandato coletivo inspira aventureiros de todas as estirpes, quer no espectro ideológico da esquerda ou da direita. Contam-se mais de 400 cocandidatos expressando os mais variados interesses e disputando os mais diferentes públicos.
Ainda não é certo que o país que se mostrou conservador na eleição anterior e que, no contexto municipal, está preocupado com soluções no “nível da rua” (saneamento, transportes, infraestrutura) dará atenção às agendas dos mandatos coletivos. A eleição de novembro próximo e o resultado das urnas julgarão o destino dessas experiências no Brasil.
Os mandatos coletivos, como o leitor já deve presumir, são uma experiência nascente em um cenário aberto. Portanto, é recomendável observar os fatos e basear nossas expectativas sobre o futuro da experiência democrática brasileira nas melhores evidências empíricas disponíveis. Oxalá os líderes dos mandatos coletivos estejam à altura dos extraordinários desafios que os esperam.
Leonardo Leal é professor de administração pública da Ufal (Universidade Federal de Alagoas). Investigador do CEI-IUL (Centro de Estudos Internacionais) e doutorando em ciência política pelo ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa, Portugal) e UnB (Universidade de Brasília).