A guerra às estátuas e a política pública de memória

Ensaio

A guerra às estátuas e a política pública de memória
Foto: Rafael Vilela/Reprodução

Compartilhe

Temas

Marcos Napolitano


29 de julho de 2021

A queima da estátua do bandeirante Borba Gato acirrou ainda mais o debate sobre o que fazer com uma memória das violências do passado contra grupos subalternos dizimados e escravizados

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

As estátuas e monumentos têm uma dupla função na representação do passado. Por um lado, são celebrações públicas de uma memória que uma dada época quis perpetuar e comunicar aos pósteros. Por outro lado, sobretudo para os especialistas, são documentos que servem como fontes de estudo do passado e seus valores. Quando um movimento social ataca esses símbolos, ou mesmo quando o poder público resolve removê-los de um local público ou abandoná-los ao tempo, é porque a mensagem celebrativa herdada do passado está sendo questionada ou perdeu o sentido para as próprias elites que as erigiram.

A queima da estátua do bandeirante Borba Gato, ocorrida no dia 24 de julho em São Paulo, acirrou ainda mais o debate sobre o que fazer com uma memória pública, heroica e sublimada, das violências do passado contra grupos subalternos dizimados e escravizados. Na verdade, os monumentos são atacados há muito tempo em várias épocas e lugares do mundo, mas desde 2015 essa tática passou a fazer parte dos movimentos antirracistas e decoloniais contemporâneos. A ação radical contra o Borba Gato de pedra, assumida por um coletivo de esquerda, acabou provocando uma série de reações que envolvem o cidadão comum, militantes, gestores públicos, professores, historiadores, urbanistas, entre outros.

Há dois grupos de opinião mais ou menos delineados. Movimentos sociais e grupos de esquerda consideraram a ação legítima, como parte da causa antirracista e da estratégia de luta contra a opressão social do passado e do presente. Na outra ponta, o debate se encaminha para a condenação da ação como ato de vandalismo inconsequente, cuja resposta do poder público deve ser a criminalização dos autores, e ponto final. Entre uma e outra posição, obviamente, há muitos matizes.

Mesmo sendo próximo da primeira corrente de opinião, tenho algumas ponderações.

A ação direta contra monumentos e estátuas que simbolizam racismo, colonialismo e afins, devem ser lidas como uma mensagem dos movimentos sociais pela necessidade de uma outra política pública de memória, que exige a superação do valor de culto conservacionista, projetado nos monumentos pelo conceito tradicional de patrimônio histórico. Quanto mais o poder público e as instituições responsáveis não se posicionarem, ou tergiversarem, sobre esse debate, mais essas ações irão ocorrer, criminalizadas ou não. É pouco produtivo, politicamente falando, pedir ponderação aos movimentos sociais ou defender a mera retirada das estátuas indesejáveis para os museus.

Na tradição dos movimentos sociais, as ações são medidas a partir de suas causas e estratégias de ação. Um movimento tende a ganhar legitimidade para fora de seus quadros militantes se combina bem as duas coisas: uma causa coletiva e justa que ganhe a maioria indiferente e uma estratégia inteligente que não forneça argumentos contrários, eventualmente plausíveis, aos seus adversários e inimigos. Uma ação radical polêmica, como a queima da estátua de Borba Gato, com todos os riscos físicos e legais que ela envolve, não deveria ser a regra de ação dos movimentos, sob o risco de romper o precário equilíbrio entre causa e estratégia. Imaginemos que a fúria desse “vandalismo do bem”, antirracista e anticolonialista, chegasse às igrejas coloniais ou aos acervos dos museus que, no limite, também podem ser vistos como símbolos do passado colonial eurocêntrico e racista. Os aplausos seriam generalizados? Reitero, entretanto, que esta avaliação é fundamentalmente política, e cabe aos próprios movimentos e suas lideranças.

Em grandes processos revolucionários do passado, o debate sobre o patrimônio histórico foi acirrado e dividiu as próprias lideranças, fazendo nascer novas concepções e usos do patrimônio herdado de regimes políticos e épocas a serem rejeitadas e superadas, para além de uma postura ideológica fundamentalista. O princípio do “vandalismo revolucionário” nas grandes revoluções europeias não foi hegemônico entre as lideranças revolucionárias, sejam os jacobinos da Revolução Francesa, sejam os bolcheviques da Revolução Russa. Ambas as revoluções acabaram por ressignificar os velhos monumentos, além de erigirem outros. Grosso modo, passado o carnaval social da revolução, as lideranças revolucionárias se encaminharam para políticas mais conservacionistas e enquadraram os iconoclastas mais afoitos.

A segunda solução – a remoção das estátuas para instituições de guarda – tem incomodado os profissionais dos museus mais antenados com a nova museologia, pois parte do princípio de que museus são depósitos de peças enjeitadas pela sociedade. A nova museologia há muito revisou a concepção de museu como “espetáculo da história”, baseada na exposição serial de coisas velhas e sem uso cotidiano. Os grandes museus contemporâneos são espaços de problematização do passado e de pesquisas sobre seus vestígios materiais. Eventualmente, pode ser uma solução pontual, negociada entre o poder público e outros atores, mas não pode ser aplicada como panaceia.

Como historiador profissional, engajado em políticas de memória que aprofundem a inclusão e a democratização da sociedade, faço parte do coro que defende uma nova política pública de memória para o Brasil. Essa me parece a urgência que o ataque às estátuas e monumentos nos indica. Tanto melhor se essa política de memória se apoiar em uma historiografia crítica, ainda que memória e história sejam narrativas que operam com bases muito diferentes entre si. De todo modo, uma memória pública crítica compartilha com a historiografia o princípio de que a história nacional celebrativa e o silenciamento das vítimas e violências do processo histórico são insustentáveis sob o ponto de vista político, ético e epistemológico. Essas premissas não significam que devemos conhecer e analisar a história com a moral do presente, simplificando o conhecimento histórico como uma eterna luta de mocinhos das classes populares oprimidas contra bandidos das elites malvadas (ou vice-versa). A análise crítica do passado deve ir além do mero julgamento moral, embora inevitavelmente passe por este, sob pena de derrapar no anacronismo.

Até a Segunda Guerra Mundial, os critérios históricos para estruturar uma memória pública não passavam pelas vítimas anônimas e coletivas, mas preferencialmente pelos heróis, estadistas e militares. As memórias das vítimas, atravessadas por traumas e silêncios, eram passadas oralmente de geração em geração, no ambiente privado dos sobreviventes. Ou sublimadas através de rituais simbólicos e sociabilidades dos seus herdeiros, em espaços não-hegemônicos, nem legitimados pelo poder. As mudanças no plano da memória social e da crítica historiográfica depois do Holocausto é que vão exigir um outro passado publicamente reconhecível, desconfiado dos discursos e símbolos pautados pelo nacionalismo étnico, pelo culto à civilização eurocêntrica e pelo patriotismo cego. As lutas antirracistas e anticoloniais que formaram o pensamento pós-colonial adensaram ainda mais esse olhar crítico e questionaram o núcleo constitutivo do que eu chamo de “pacto histórico” que estruturou a autoimagem das sociedades ocidentais hegemônicas ao longo da história contemporânea.

Esse “pacto”, chancelado pelas elites burguesas que se afirmaram no século 19, tem suas bases nas conquistas revolucionárias, moderadas ou radicais, que consagraram o Iluminismo, o progresso técnico, o humanismo abstrato e o liberalismo como lentes para comemorar um passado comum. Nesse processo é que os fatos e heróis nacionais, mesmo aqueles ligados aos “antigos regimes” derrubados pela burguesia liberal, foram consagrados. Mesmo o movimento operário e as revoluções socialistas se mantiveram, em linhas gerais, dentro desse “pacto histórico”. No campo da esquerda, tratava-se de ampliar o acesso à riqueza nacional, estender os direitos civis aos pobres e corrigir as injustiças de classe do passado e do presente. Mas as bases do passado nacional permaneceram mais ou menos intactas. Mesmo o grande movimento de Direitos Civis dos Estados Unidos buscou se legitimar operando uma releitura radical da tradição religiosa e política da fundação da “América”, mas não chegou a negar os mitos fundadores da democracia americana. Na França, a direita republicana e as esquerdas reclamam até hoje a herança da Revolução Francesa, rejeitada apenas por fascistas e por monarquistas da ultradireita, barulhentos, mas minoritários. Inicialmente, os próprios movimentos anticoloniais da Ásia e da África incorporaram, dialeticamente, a linhagem progressista e revolucionária do Ocidente, mesclados a valores políticos e culturais locais, com o surgimento de movimentos de libertação nacional que incorporavam o discurso nacionalista e a linguagem dos direitos, incluindo-se o direito fundante do próprio liberalismo, o direito à rebelião contra a tirania.

Entretanto, a emergência de um pensamento pós-colonial no fim do século 20 foi além, exigindo não apenas o reconhecimento do direito político à independência nacional, mas a revisão dos fundamentos da própria história ocidental e sua autoindulgência liberal que se manteve intacta, mesmo depois da crise do colonialismo “de direito”, no reordenamento do mundo e no reconhecimento das minorias. Ao lado dos movimentos libertários pós-1968 e das próprias mudanças na elite do capitalismo liberal pós-industrial, menos afeita ao nacionalismo, constituem o pano de fundo da atual crise do pacto histórico em várias sociedades ocidentais ou ocidentalizadas à força, como a brasileira.

No caso do Brasil, o processo foi similar. A emergência de lutas populares e antirracistas colocou em xeque os valores da própria esquerda nacionalista dos anos 1950 e 1960, que defendia alianças de classe e de raça em nome do anti-imperialismo e da democratização geral da sociedade, aceitando as linhas gerais do “pacto histórico” que sustentava a grande narrativa nacional. A partir dos anos 1980, com a afirmação de uma nova esquerda e de novos movimentos sociais de base, construiu-se uma narrativa histórica igualmente renovada para rever o lugar dos “de baixo” ao longo do tempo, sem os filtros ecumênicos das “lutas nacionais” ou da “mestiçagem racial”. A expressão na historiografia e no ensino de história foi a “história dos vencidos” e seu corolário, o surgimento de uma memória épica que pauta os movimentos populares. Essa memória popular redimensionou, de maneira radical, as lutas sociais do passado, não sem certo anacronismo. Nesse diapasão é que se construíram slogans comuns como “500 anos de resistência contra a opressão”, baseados muito mais no resultado de alianças de grupos excluídos no presente do que uma pauta ou experiência histórica comuns no passado. A direita, conservadora ou liberal, por sua vez, reagiu a essas narrativas de resistência, com os seus “brasis paralelos” e os “guias politicamente incorretos”, projetos que forneceram aos antiesquerdistas uma história para chamar de sua.

Chegamos, assim, aos impasses atuais que desafiam não apenas o ensino escolar de história, mas a afirmação de uma política pública de memória, e que desaguam na atual guerra aos monumentos e na guerra de narrativas mutuamente excludentes sobre o passado, com olhos nos conflitos do presente. Tudo isso agravado pela crise política e institucional que vivenciamos desde 2016.

O que fazer diante desse quadro, ao menos no campo das políticas públicas?

Por princípio, uma política pública nunca deve ir de encontro ao direito à memória dos diversos atores e grupos sociais e suas identidades religiosas, culturais ou político-ideológicas que não devem ser tuteladas nem por governos, nem por historiadores. Ainda assim, para uma nova política pública de memória seria fundamental eleger alguns valores basilares, tendo como eixo central os direitos humanos com foco na democratização, na pluralidade cultural, no antirracismo e na inclusão social. Além disso, seria preciso ir além de princípios abstratos, constituindo comitês de gestão da memória pública com ampla participação da sociedade civil e de movimentos sociais, em diálogo com o debate historiográfico, o pensamento museológico e o ensino de história, para além do viés patrimonial e conservacionista estrito.

Reconheço que é muito difícil transpor as sutilezas historiográficas dos textos e dos debates que podem ocorrer nas pesquisas e em salas de aula para uma política de memória pública. Nem seria o caso, pois história não é memória. Mas a crítica historiográfica e a memória como parte da luta pela democracia e pela inclusão têm algo em comum. A luta contra o negacionismo que apaga o passado racista e escravocrata é de fundo ético, e não mero sectarismo político-partidário de professores e pesquisadores “doutrinadores”, nem é incompatível com uma prática historiográfica objetiva, crítica e distanciada. Nesse sentido, a historiografia pode ajudar nos debates para uma nova política pública da memória que seja plural e inclusiva, que não esconda as violências do passado atrás de monumentos celebrativos, nem chancele uma política de terra arrasada do patrimônio, por mais incômodo e polêmico que este seja para os valores atuais. Há muitas possibilidades entre uma e outra, e mesmo os movimentos sociais, no Brasil e no exterior, têm um grande repertório de ação direta em lugares de memória, para além das ações de “bota-abaixo” das estátuas.

Alguns exemplos.

No México, as performances antimonumentais têm realizado intervenções impactantes no espaço público, inserindo objetos efêmeros de grande dimensão nas ruas e praças para dar visibilidade à violência social que assola o país. Na Hungria, “contramonumentos” têm questionado o revisionismo histórico oficial do governo de ultradireita e o lugar do país em relação ao Holocausto, descontruindo monumentos oficiais. No Brasil, há exemplos de intervenções estéticas e apropriações do entorno que não causam danos aos monumentos e cumprem a função de chamar a atenção para a causa em questão, articulando-se a petições públicas para a retirada institucional de estátuas cuja rejeição é majoritária.

As possibilidades e experiências são muitas. Mas, pessoalmente, tenho dúvidas se todo o debate que se seguiu às imagens impactantes do incêndio da estátua de Borba Gato irá mudar os rumos das políticas de memória e de patrimônio em São Paulo e em outras cidades do Brasil. Mesmo em relação a símbolos da ditadura, como nomes de ruas, prédios e espaços de violência de Estado, a implantação de uma política de memória mais proativa e socialmente disseminada enfrenta muitas resistências institucionais e ideológicas, mantendo-se na pauta graças à pressão de grupos específicos de direitos humanos e seus poucos parceiros estatais. É bem provável que a reação do poder público no rescaldo do incêndio não vá além do discurso da criminalização das ações diretas e da indignação das autoridades, as mesmas que muitas vezes não hesitam em vender a cidade para o vandalismo autorizado e legalizado da especulação imobiliária em nome do progresso e da economia. Aliás, é bem provável que o debate sobre os monumentos públicos não se conecte ao debate sobre a cidade e seus usos, sem o qual nenhuma política pública de memória se sustenta. A crise dos monumentos públicos também é um tipo de crise da própria cidade que os abriga.

De outra parte, reconheço que seria virtualmente impossível uma memória pública baseada na remoção de todos os símbolos que remetem ao passado colonial opressivo, às ditaduras ou às violências de classe, pois “todo monumento de cultura é um monumento de barbárie”. Apesar de soar como um clichê, a famosa frase de Walter Benjamin parece que ainda não foi plenamente assimilada pelas políticas públicas dominantes de patrimônio e de memória. Ela nos sugere que só compreendendo o lugar e a natureza das violências do passado é que podemos evitar que elas se perpetuem no presente e não sejam sublimadas por estátuas que nos olham de cima, sejam elas feias ou bonitas. Como afirmou Jacques Le Goff, outro autor clássico da historiografia, é preciso, mais do que nunca, transformar os monumentos em documentos.

Marcos Napolitano é professor titular de história do Brasil Independente no Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), e doutor em história social pela mesma universidade.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.