Em 2021, o grito das mulheres é contra a fome

Ensaio

Em 2021, o grito das mulheres é contra a fome
Foto: Lucas Landau/Reuters - 11.abr.2020

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Paola Carvalho e Mariana Belmont


30 de março de 2021

O mês de março se encerra com um quadro grave. Os cortes nos programas de transferência de renda ajudaram a intensificar a desigualdade social, em especial a de gênero e raça

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Março é o mês de referência na luta das mulheres. Longe de ser uma iniciativa do comércio, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1975. Tanto o dia 8 quanto o mês de março se transformaram, assim, num marco para reafirmar a importância da igualdade de gênero e da luta por direitos.

Neste março de 2021, um dos apelos mais sofridos vem, por meio de todas nós, em forma de grito. É o grito contra a fome e pela dignidade. São as mulheres, em especial as mulheres negras, as que mais sofrem com a pobreza extrema, com o analfabetismo, com as falhas do sistema de saúde, com os conflitos e com a violência doméstica.

A redução de direitos e de políticas públicas já vinha sendo adotada pelo governo federal como justificativa para o ajuste fiscal, mesmo antes da pandemia. Com a chegada do coronavírus ao Brasil, o quadro só se agravou. A conta a ser paga pelas mulheres é simples e cruel: menos direitos e a redução de políticas sociais geram mais pobreza e mais desigualdade.

O número de brasileiros enfrentando insegurança alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Retrocedemos 15 anos neste período! Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2018 havia 10,3 milhões de pessoas nessa situação, contra 7,2 milhões em 2013. Mais de um terço da população – 84,9 milhões – enfrentou algum grau de insegurança alimentar em 2018; o maior percentual registrado desde 2004, quando o levantamento começou a ser feito.

Nos lares da fome, mais da metade eram chefiados por mulheres na cidade e no campo. Nas zonas rurais, a insegurança alimentar grave é muito mais preponderante do que nas cidades, com quase metade das famílias vivendo com algum grau de insegurança – nessa população, a relação é de 7,1%, contra 4,1% no meio urbano. Com a pandemia, esse universo se agravou… e muito!

Toda essa situação se intensificou ainda mais para as mulheres negras. Com efeito, estudo publicado pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da USP (Universidade de São Paulo) mostra que, no caso de domicílios liderados por mulheres negras, o auxílio emergencial ajudou a tornar a renda delas mais próxima de outros grupos, como de brancos e de mulheres brancas, mesmo quando comparada ao período anterior à pandemia. Ou seja: antes da covid-19, a renda per capita dos domicílios chefiados por homens brancos era 2,5 vezes superior à renda per capita dos lares chefiados por mulheres negras.

Como cuidar de nós mesmas e de nossas famílias quando somos criminalizadas constantemente por parte das políticas sociais?

Mesmo a alimentação sendo um direito básico do ser humano nem todo mundo tem acesso à comida. São pessoas que dormem hoje sem saber quando será sua próxima refeição ou mesmo quando terão algum alimento para oferecer a seus filhos. São mães, na maioria mães solo, que não têm com quem dividir não só a responsabilidade da maternidade, mas também a dor de ver um filho chorar porque não tem o que comer.

E crianças não entendem a razão de alguém ter e elas não. Não conseguem compreender nem mensurar que a falta de alimento, especialmente comida de qualidade, vai comprometer seu desenvolvimento físico e psíquico. Que geração teremos adiante? Que crianças queremos formar?

O som da panela vazia ecoa nas casas pelo Brasil, só não ressoa nos ouvidos de quem consegue dormir em paz quando milhares, sob seu comando, vivem em situação de pobreza extrema. Quem consegue mensurar a dor ou julgar uma mãe quando, sem qualquer alternativa de trabalho e de sustento, se prostitui porque não pode mais pedir ajuda à família, aos vizinhos, à comunidade porque todos vivem situação semelhante ou pior ao seu redor?

Encerramos o mês de março com um quadro muito agravado pela falta, desde dezembro de 2020, do auxílio emergencial e pelos cortes feitos no programa Bolsa Família – que aconteceram como se não estivéssemos vivendo uma pandemia: somamos mais de trezentas mil mortes pela covid-19, registramos mais de três mil óbitos em um único dia! A falta de programas de transferência de renda no momento mais crítico da crise sanitária eleva ainda mais a desigualdade social, em especial a de gênero e raça. Cortaram números sim, é verdade, mas também pessoas, nomes, histórias.

Dos 68 milhões de brasileiros beneficiados pelo auxílio emergencial, 37,8 milhões são mulheres. Para milhões dos nossos, a fome é algo crônico, duradouro, dilacerante. É perder a garantia de uma vida minimamente digna. Como cuidar de nós mesmas e de nossas famílias quando somos criminalizadas constantemente por parte das políticas sociais?

Na luta das mulheres, é preciso questionar as relações de trabalho, a mão de obra não remunerada e tantas outras situações de exclusão. Precisamos encontrar mecanismos de redistribuição de todas as riquezas que produzimos coletivamente, tanto nos lares como fora deles. Em especial, para as que acumulam jornadas exaustivas e ainda são imensa maioria no cuidado com seus filhos e filhas, idosos e idosas, além de pessoas com necessidades especiais.

Por isso, a discussão séria de uma renda básica universal, que dê às pessoas a chance de permanecer em casa ao invés de arriscar a vida em busca de sustento, é urgente, necessária e imprescindível. Essa discussão, somada à defesa e à ampliação dos serviços públicos e da seguridade social, contribuirá para conferir mais poder, mais tempo com qualidade e mais liberdade para todas nós.

Paola Carvalho é diretora de relações institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica e da Campanha Renda Básica que Queremos.

Mariana Belmont é jornalista, militante da Uneafro Brasil, da Rede Jornalistas das Periferias e da Campanha Renda Básica que Queremos.

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