Somamos quase 200 mil mortos pela covid-19 e eu estou aqui triste e confusa, tentando terminar uma tese de doutorado e juntando os cacos da minha vida cotidiana em meio a trending topics de “Parabéns Bolsonaro”. Um meme, uma lacração, uma nova controvérsia. Se não fico o dia inteiro na cama, vivo como se estivesse me salvando de um angustiante afogamento. Um post que circulou por aí disse que isso era luto. Só que luto para mim era diferente.
Na morte do meu pai, eu me afundei mesmo, recebi apoio dos queridos, consegui licença do trabalho e retomei a vida aos poucos. Mas não tem nada disso agora. Escrevo esse texto para me perguntar que luto meia-boca é esse que estamos fazendo – e vou pedir licença para me utilizar de um pouco de psicanálise de boteco e de ciências sociais.
Um traço que me intrigou nessa pandemia diz respeito a uma ideia implícita de que estaríamos de alguma forma imunes à desgraça e à tragédia. Isso esteve presente na fala do presidente, ao dizer que o brasileiro precisava ser estudadoporque “ pula no esgoto” e nada lhe acontece . Lembro de memes e de gifs em que o Sars-CoV-2, vírus causador da covid-19, lutava contra o vírus da dengue e do zika e perdia a batalha. Fiquei pensando que os casos acima parecem supor que temos uma resiliência acumulada – resultante do confronto consecutivo com nossos infortúnios históricos. Comecei a me questionar também sobre o que media a ideia de que a desgraça não atingiria o Brasil, e o que o humor tem a ver com isso.
Freud afirma que parte do nosso mal-estar e de nossas difíceis decisões são consequência do duelo travado entre o princípio do prazer e o da realidade; grosso modo, entre as sanções sociais impostas a nossas pulsões e a matemática complexa de postergar prazeres momentâneos por outros potencialmente maiores a posteriori. Por mais elementar que seja a equação, parece que nem todo mundo faz essa conta até o fim. Muitas pessoas preferem recorrer a um atalho: parar no tempo e dar risada. O subterfúgio é tão sedutor que nem vontade de terminar este texto eu tenho.
Outro elemento curioso é que esse humor não é a simples negação do que estaria para acontecer (a pandemia do novo coronavírus), mas uma afirmação do que já aconteceu (arboviroses, esgoto). O eu-Brasil se recusa a sofrer com a realidade, mas não se trata de fuga ou negação, mas de reconhecimento: o eu se afirma. Podemos rir porque de desgraça nós entendemos. Nos reconhecemos nela. Penso que se trata de um humor “precoce” demais, se é que essa categoria existe. Não tem luto; e, sem ele, não tem construção nem desejo.
O luto gerado pela pandemia sequer é uma categoria processada coletivamente. Vivemos uma forma particular de melancolia à brasileira, mediada pelo humor
A linha freudiana nos diz que se enlutar é o trabalho de conseguir substituir o objeto perdido; e, passado um tempo doloroso, voltar a sentir prazer e felicidade pelo redirecionamento da libido para outro objeto. Mas se não vivenciamos o luto, se não reconhecemos a perda, para onde vai o desejo? Parece que estamos presos em uma forma particular de melancolia, em que não reconhecemos o objeto perdido. Na verdade, nem mesmo esse sentimento importa, já que ele não carrega consigo ideal algum. Então, rimos e nada construímos.
Não são todos os brasileiros que possuem o luxo de usar o riso como atalho porque, para muitos, o objeto perdido é bastante concreto – o número de mortes pelo novo coronavírus no Brasil é cinco vezes maior entre os negros . Isso muda o estatuto de nossa análise, com o imaginário desse riso sendo quase como uma categoria ideológica que serve ao interesse da invisibilidade do sofrimento da maioria. É como diz o senso comum: “o brasileiro sabe ser feliz”. Mas sabe mesmo? O que sabemos é que as mortes no Brasil, não de hoje, passam por um recorte racial.
Na atual política de Estado, todos estão sob a mira da morte. A morte é a potência e o Estado tem se retirado da sua função biopolítica de causar a vida. Não há administração dos corpos, tampouco uma política pública clara –inclusive com ameaças de falseamento estatístico do número de mortes . É a extensão do necropoder, em que todos os corpos encontram sua finitude, mas alguns “vivem” porque articulam outros recursos, outros marcadores: seja de classe, seja de nível educacional, seja porque ocupam territórios “dentro” do Estado.
No texto “Considerações atuais sobre guerra e morte”, de 1915, Freud discorre sobre como o projeto civilizatório do homem de evitar a guerra é ilusório. A guerra não nos deveria surpreender porque o que vivíamos anteriormente não era sua ausência, mas uma situação em que o Estado apenas a monopolizou – e a direcionou, acrescento aqui, para grupos específicos enquanto os demais se iludiam. No inconsciente, diz Freud, cada um está convencido de sua imortalidade. Logo, não surpreende que, em parte, persigamos um estado de coisas em que a morte não seja uma ameaça.
O problema é que nos iludimos inclusive na maneira de frear essa inclinação. Nossos desejos mais egoístas podem ser direcionados – não por sistemas altamente racionalizados de castigo e recompensa (como a educação ou a justiça operam) –, mas pela oferta de amor e de reconhecimento em um sentido mais amplo.
Não preciso ir muito longe para dizer que falhamos. Encorajados por sucessos momentâneos dessa estratégia meritocrática do castigo e recompensa, apagamos conflitos, desigualdades, aumentamos as tensões e cobranças sobre os indivíduos, maximizamos privilégios. Resultado: a guerra sempre é realidade para alguns; e, para outros, questão de tempo.
Para a psicanálise, a civilização é essencialmente uma experiência de sofrimento; e, sobretudo, ela não circula só fatos, ou normas, ou castigos, ou exemplos, mas ela faz circular afetos. Freud e Lacan, como muitos cientistas sociais, trabalham com a ideia de que há uma gênese social da individualidade. Há, no entanto, uma história psíquica do sujeito, como observou Lacan, em que o processo de individuação a partir do social é conflituoso. Nossa individualidade é forjada por uma identificação (internalização de tipos ideais sociais) que aliena o eu de si mesmo a partir do momento em que se tem um modo de pensar e desejar moldado pelo outro. Isso significa dizer, em suma, que toda a socialização é alienação. Sobretudo, não há um eu “passivo” que passa por esses processos sem uma travessia dolorosa – e isso gera afetos que talvez as ciências sociais estejam deixando de olhar.
Essa ideia é particularmente interessante quando pensamos que muitas vezes o outro, na sociedade das redes digitais, é destituído de sua carga afetiva. E os processos de identificação são formados a partir de seres chapados, desprovidos de uma vida psíquica profunda. O antropólogo Allen Feldman faz uma releitura do termo “anestesia cultural”, cunhado por Adorno, em que a objetificação e o racionalismo atuais aumentam a possibilidade de que se cause dor no outro; com essa dor sendo ainda inadmissível para o discurso cultural. Creio que o nosso quase luto também está mediado por essa anestesia, mas isso não significa que a dor não esteja lá. Em uma espécie de dialética negativa, em que se nega o próprio fato (a morte) que gera a tese (a necessidade de superação), a dor é recalcada.
Nossa dor é sufocada por intermédio dessa construção de discursos que parecem enunciar, mas silenciam. Se é fato que não nos indignamos com os nossos mortos, se é fato que essas mortes não abalam a popularidade de um presidente que se esforça em negá-las, a minha hipótese é que essa dor sequer é uma categoria processada coletivamente. Na melancolia, há a impossibilidade de fazer o luto do objeto perdido. Vivemos uma forma particular de melancolia à brasileira, mediada pelo humor. Um riso precoce que nos anestesia e que pode ter funcionado por um tempo.
Não sei quanto a vocês, mas eu me sinto acordando no meio de uma cirurgia.
Monique Oliveira é jornalista e doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo).