Vacinação de pessoas com deficiência: uma questão de justiça

Ensaio

Vacinação de pessoas com deficiência: uma questão de justiça
Foto: Sebastian Castaneda/Reuters - 16.abr.2021  

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Paula Ramos


13 de junho de 2021

A demora para a inclusão de pessoas com deficiência permanente no Plano Nacional de Imunização é reflexo do apagamento e da exclusão social vivenciado historicamente

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A pandemia da covid-19 no Brasil segue em ritmo descontrolado. A cada dia que passa sem vacina, assistimos a milhares de mortes que poderiam ser evitadas, caso o governo federal tivesse assumido uma política comprometida em salvar a vida da população. Vivemos um momento trágico, em que o Brasil atinge mais de 480 mil mortes. Em um país tão desigual, no qual as disparidades se amplificam nesse contexto de pandemia , sabemos que é urgente a vacina para todos os cidadãos.

No entanto, diante do triste cenário em que vivemos, de escassez de vacinas, é preciso estabelecer prioridades dentro das prioridades. Em todos os países, o critério aplicado é o de preservação da vida. O princípio de igualdade material e direito à vida é garantido pela Constituição Federal brasileira e respalda o entendimento de que os grupos mais vulneráveis a desenvolver formas graves e vir a óbito, caso infectados pelo coronavírus, sejam vacinados primeiro. Assim, corretamente, vimos as pessoas idosas sendo vacinadas em primeiro lugar. Seguindo esse critério, as pessoas com deficiência deveriam ser as próximas a serem vacinadas.

A vacinação imediata das pessoas com deficiência é amparada na Lei Brasileira de Inclusão (lei 13146/2015) que, em seu artigo 10º, considera que “em situações de risco, emergência ou calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança”.

Diversos estudos científicos apontam a maior vulnerabilidade das pessoas com deficiência de se infectar, desenvolver formas graves e morrer de covid-19. Um estudo publicado no periódico New England Journal of Medicine constatou que entre jovens com deficiência (entre 20 e 39 anos), a taxa de mortalidade pela covid-19 chega a ser 24 vezes maior do que a da população em geral. Os autores concluem que pessoas com deficiência intelectual são o segundo grupo mais vulnerável, atrás apenas de pessoas idosas. No mesmo sentido, a Agência de Estatística Nacional, na Inglaterra, ao analisar os casos de óbito de pessoas com mais de 30 anos, constatou que o risco de morte em pessoas com deficiências física e sensorial (excluindo deficiência intelectual) é até 90% maior que em pessoas sem deficiência.

As vidas e as histórias das pessoas com deficiência são invisibilizadas e, aos olhos da sociedade, valem menos. Em relação à vacina, essa exclusão vem sendo atualizada com nova roupagem

Partindo dessas evidências, a Organização Mundial da Saúde afirma a vulnerabilidade das pessoas com deficiência já que, dentre outros aspectos, apresentam: baixa imunidade e comorbidades associadas – como problemas cardíacos e respiratórios; dificuldades de seguir protocolos de segurança; dificuldade de identificar e comunicar sintomas; necessidade de encostar em objetos para obter informações sobre o ambiente ou para se apoiar fisicamente; necessidade de suporte de cuidadores e de terapias – aumentando a exposição ao vírus. No caso de pessoas com deficiência visual e auditiva, há o agravante de as informações sobre sintoma, prevenção e cuidado, muitas vezes, não serem acessíveis.

Apesar do amparo legal e científico, as pessoas com deficiência permanentes só foram reconhecidas como grupo prioritário depois de muita luta, na 5º edição do PNI (Plano Nacional de Imunização) do governo federal. Isso é reflexo do apagamento e da exclusão social vivenciado historicamente pelas pessoas com deficiência. Suas vidas e histórias são invisibilizadas e, aos olhos da sociedade, valem menos que das pessoas típicas. Em relação à vacina, essa exclusão vem sendo atualizada com nova roupagem.

Em 26 de abril de 2021, o Ministério da Saúde propôs, por meio de uma nota técnica , a priorização de pessoas com síndrome de Down, independentemente da idade, e de pessoas com deficiência entre 55 e 59 anos, cadastradas no BPC (Benefício de Prestação Continuada). Embora avance no reconhecimento da prioridade da síndrome de Down, sem um critério etário, apresenta dois problemas. Em primeiro lugar, por que não estender o critério para outras deficiências intelectuais e doenças raras? Em segundo lugar, o que fundamenta restringir apenas para pessoas com deficiência cadastradas no BPC? Criar critérios de exclusão em um grupo que já vivencia restrições tão árduas não é justo, tampouco constitucional e revela a crueldade como um projeto.

Esse direcionamento da União não atende a urgência, a vulnerabilidade e o direito à vida das pessoas com deficiência. O resultado disso é uma vacinação pífia de pessoas com deficiência. Até o dia 8 de junho, apenas 4% das pessoas com deficiência haviam sido vacinadas com a primeira dose. Esse percentual está muito abaixo de outras categorias prioritárias. É importante ressaltar que o critério deve ser: vacinar pessoas com TODAS as deficiências, com urgência, sem estabelecer critérios de idade, renda ou de tipos de deficiência. Assim como a vacinação das pessoas idosas, as pessoas com deficiência constituem um grupo heterogêneo de pessoas consideradas igualmente vulneráveis no cenário da pandemia, independentemente de outros critérios.

Lutar pelo direito à vida das pessoas com deficiência vai muito além de uma luta por vacina, é uma luta por uma reparação histórica e por um futuro pautado na valorização de uma sociedade plural. Uma sociedade inclusiva é uma sociedade para todos. Não é favor, é direito!

Paula Ramos é professora do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mãe de Clarice (21 anos), que tem uma síndrome rara (chamada Cri-du-Chat) e integrante do Coletivo Vacina Já – RJ.

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