E se o filme ‘Argentina, 1985’ inspirasse o Brasil de 2023?

Ensaio

E se o filme ‘Argentina, 1985’ inspirasse o Brasil de 2023?
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Inês Virgínia P. Soares e Melina Girardi Fachin


10 de dezembro de 2022

Não há transição sem mulheres para repensar e reconstruir a democracia social no direito e na política. A partir do olhar de gênero, a justiça de transição pode e deve ganhar novos contornos

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O ano de 2022 foi o da adesão inaugural do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) à campanha “21 dias de ativismo pelo fim da violência contra mulher”. Este reconhecimento lançou luzes para a relevância de um Judiciário comprometido com o enfrentamento às diversas formas de violência de gênero, inclusive as violências relacionadas à impunidade do passado recente e à invisibilidade do sofrimento das mulheres durante a ditadura brasileira. A campanha se encerrou no dia 10 de dezembro, dia Internacional dos Direitos Humanos, a mesma data escolhida, em 2014, para apresentação do Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que dedicou o capítulo 10 ao tema da “violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes”.

Por coincidência, o dia 20 de novembro, marcou não apenas o lançamento dos “21 Dias de Ativismo” pelo CNJ, mas também a partida de Hebe de Bonafini, uma das fundadoras da iniciativa argentina conhecida como Mães da Praça de Maio , iniciada durante a ditadura (1976-1983) , contra os desaparecimentos e mortes de seus filhos, filhas e noras e o sequestro dos bebês que são seus netos. Sua morte levou o governo da Argentina a decretar três dias de luto nacional. Na nota oficial, é dito que a memória e luta de Hebe “estarão sempre como guia nos momentos difíceis”.

A homenagem póstuma diz muito sobre como aquele país lida com o legado de violência da ditadura e confirma a visão de pesquisadoras e pesquisadores de que a Argentina é uma referência no tema da justiça de transição. O compromisso com o Nunca Mais é renovado pública e oficialmente, assim como o reconhecimento do sofrimento das vítimas e sobreviventes, como forma de valorização da memória e da verdade.

A Argentina, ao contrário do Brasil, fez sua transição à democracia com a invalidação das leis de anistia e punição dos responsáveis. Usou os parâmetros do direito internacional dos direitos humanos sem ter sido diretamente obrigada a fazê-lo. O Brasil, por outro lado, mesmo com duas condenações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (casos Guerrilha do Araguaia e Vladimir Herzog), continua sem dar conta do seu passado autoritário – o que se mostrou bastante perigoso em um governo como este que se finda. Não há justiça sem olharmos pelo retrovisor. O esquecimento da atrocidade pressupõe (re)conhecimento de sua existência.

De acordo com a Organização das Nações Unidas, as medidas que vieram a ser conhecidas como de justiça transicional são originárias de países latino-americanos na década de 1980, após o fim de uma série de governos autoritários na região. Justiça de Transição é o termo usado para definir um conjunto de estratégias para a implementação dos direitos à Justiça, à verdade, à reparação e a garantias de não repetição em contextos posteriores a graves violações de direitos humanos e sérias violações de Direito Internacional Humanitário. Obrigações internacionais recaem sobre os Estados no que tange a cada uma destas dimensões da Justiça de Transição, de modo que a verdade não substitui a Justiça nem as reparações – e vice-versa. As facetas da justiça transicional devem ser implementadas de maneira complementar, e não isoladamente.

Em 2011, o Conselho de Direito Humanos da ONU adotou a Resolução 18/7, por meio da qual instituiu uma relatoria especial (Special Rapporteur) para a promoção da verdade, da justiça, da reparação e de garantias de não-repetição. Desde então, diversos estudos sobre justiça de transição têm sido elaborados, dentre os quais se destacam os que versam sobre as reparações. Antes, em 2005, a Assembleia-Geral da ONU instituiu os princípios e diretrizes básicas referentes ao direito das vítimas de violações manifestas das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário a interpor recursos e obter reparações (Resolução 60/147).

Dados de criminosos do passado não precisam de abrigos e esquecimentos institucionais na democracia

De acordo com esse documento, a reparação deve guardar proporcionalidade com a gravidade da violação e as circunstâncias do caso, devendo ser plena e efetiva, traduzindo-se nas seguintes modalidades: restituição, indenização, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição. As reparações são obrigações do Estado, mas as iniciativas reparatórias não oficiais também são necessárias e contribuem para a reconciliação coletiva.

A arte cinematográfica se enquadra na modalidade reparatória garantias de não repetição e tem sido utilizada com bastante êxito pelos argentinos, como forma de passar o passado a limpo, lançar luzes para as vítimas e comprometer a sociedade com o Nunca Mais, para que as atrocidades jamais se repitam. A busca da verdade sobre violações a direitos humanos é um direito que em nada se confunde com vingança.

O filme “A história oficial”, dirigido por Luis Puenzo e lançado em 1985, dois anos após o fim da ditadura, foi uma medida reparatória não oficial que tornou o crime de sequestro de bebês e a luta das Mães da Praça de Maio mundialmente conhecidos. Apresenta o drama de uma família que tem uma filha adotiva e, ao longo da trama, a mulher que a criou desde recém-nascida descobre que a mãe biológica da criança era uma presa política que deu à luz no cárcere e, após o parto, foi desaparecida e teve sua recém-nascida sequestrada e entregue à família para adoção. A mãe adotiva não tinha conhecimento sobre essa situação durante os primeiros anos da criança até que começa a desconfiar e passa a investigar. Vai a uma manifestação das Mães da Praça de Maio e encontra aquela que seria a avó biológica de sua filha adotiva. A complexidade e a dor do drama familiar, a separação entre mãe e filha adotivas, a devolução da criança à sua família biológica foram tratados com sensibilidade e qualidade e levaram o filme a ganhar diversos prêmios, dentre os quais, o Oscar e o Globo de Ouro, na categoria de melhor filme estrangeiro, em 1986.

No filme, a busca da verdade foi iniciativa da mãe adotiva que estava envolvida num dos crimes mais cruéis da ditadura, embora não tivesse participado do sequestro do bebê ou sequer tivesse conhecimento que esse crime acontecia. Ela teve de se desvencilhar da “história oficial”, repleta de omissões, segredos e violência, para encontrar a dolorosa verdade.

Quando este filme foi lançado, a expertise na adoção de modelos de Justiça de Transição na América Latina ainda era incipiente, mas já é possível compreender a importância das entidades da sociedade civil e o porquê dessas entidades, como a Mães da Praça de Maio, terem se tornado atores centrais na luta por memória, justiça e verdade.

A busca da verdade com o desvinculamento da “versão oficial” e opção pela vingança foi o mote do filme “O segredo dos seus olhos”, de 2009, dirigido por Juan José Campanella, protagonizado por Ricardo Darín e Soledad Villamil. Foi bastante festejado, porque ganhou diversos prêmios, inclusive o Oscar e o Goya, na categoria melhor filme estrangeiro de 2010. Em 2022, voltou à tona no cenário brasileiro, causando reações, após o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, mencionar, num evento em Nova York, que “não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, que a síntese é aquele filme do Darín, ‘O segredo dos seus olhos’. Uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio, e olhando pra trás, pro retrovisor, sem conseguir se superar”.

O drama se desenrola em torno de um crime de estupro e homicídio ocorrido em 1975 e não solucionado, por falhas no sistema de Justiça. O marido da vítima não se conforma com a impunidade e resolve fazer justiça sozinho, tornando-se algoz do assassino, prendendo-o num compartimento insalubre por 25 anos, apenas o alimentando para que ele ficasse vivo e pagando pelo crime.

Ao retratar o binômio impunidade/vingança, o filme provoca o espectador a refletir sobre as formas de atuar, individual ou coletivamente, na busca de justiça quando o sistema normativo não oferece meios para a responsabilização criminal do agressor.

Remete à injustiça da anistia dos torturadores da ditadura, tema latente à época da produção cinematográfica e também do livro “La pregunta de sus ojos” (2005), de Eduardo Sacheri, romance na qual se baseou. Também serve para discutir a razão que levou Hebe de Bonafini e todas as Mães da Praça de Maio a apostarem nas instituições, inclusive no Judiciário, apesar de todos os sinais contrários.

Os debates provocados pela trama foram, de algum modo, enfrentados na Argentina, já que as leis de anistia que vigoravam quando o filme foi lançado não existem mais. Os algozes têm sido processados judicialmente pelos crimes cometidos.

A luta por verdade e justiça e o afastamento da vingança, por meio de estratégias que acreditam nas instituições e passam pela judicialização dos crimes nefastos da ditadura, é uma síntese do que aconteceu na Argentina. Síntese esta que foi veiculada com maestria no filme “Argentina,1985”, dirigido por Santiago Mitre, lançado em 2022.

Este filme, ao retratar o julgamento emblemático que ficou conhecido como Julgamento das Juntas Militares, mostra a importância de se enfrentar o passado, com o processamento e punição dos responsáveis. Em quatro meses, 833 pessoas testemunharam no processo sobre o aterrorizante aparato clandestino da repressão. A dedicação dos jovens que trabalharam na equipe de investigação do promotor-chefe Julio César Strassera e de Luis Gabriel Moreno Ocampo, promotor auxiliar, é uma inspiração para as novas gerações. Outro ponto alto é o depoimento de Adriana Calvo de Laborde, que havia sido sequestrada quando estava grávida de nove meses e que deu à luz no carro dos algozes. Após ter o bebê, ela foi levada a um prédio e, nua e sangrando do parto, foi obrigada a lavar o chão do local. No filme, os argentinos, que acompanhavam o julgamento presencialmente ou pelo rádio, mudam de opinião após Adriana Calvo relatar a crueldade sofrida. As lições inspiradas pela arte cinematográfica Argentina nos mostram o quanto urge construir uma justiça transicional própria para o Brasil.

O filme “Argentina, 1985” é incômodo quando visto desde a perspectiva do nosso país. Por muitas razões. A primeira e mais relevante é a falta de punição criminal dos responsáveis pelas atrocidades cometidas na ditadura (1964-1985). Mas há outra razão que queremos destacar: a pouca atenção, sob a lente de gênero, à crueldade dos impunes.

Aqui, mulheres foram presas e abusadas em estado puerperal e sofreram a violência de ficarem nuas, inclusive para realizar tarefas de limpeza nos cativeiros nos quais estavam detidas. Um dos casos emblemáticos foi o da jornalista Rose Nogueira, presa quando seu filho tinha apenas 33 dias de vida. Rose amamentava seu bebê e, separada de seu filho, teve febre nos dias iniciais de prisão por causa da produção do leite. Ela era constrangida pelos algozes por seu leite vazar. Já Inês Etienne, única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis (centro clandestino de tortura mais conhecido no Brasil), relatou que era obrigada a realizar, nua, tarefas domésticas no local do cativeiro, enquanto os torturadores lhe diziam impropérios. Haurindo as lições argentinas, merece destaque, sobretudo, o papel que as mulheres – como as inúmeras Hebes (de Bonafini) e Adrianas (Calvo) – desempenham nestes processos de reparação.

Neste sentido, uma possibilidade seria o método interpretativo proposto pela professora Katharine Bartlett, “the woman question”, para verificar e expor o impacto das normas jurídicas sobre as mulheres, que busca identificar as implicações de gênero nas normas e práticas jurídicas que podem parecer neutras ou objetivas. Para ela, esta possibilidade pode trazer alternativas interpretativas que promovem uma alocação mais justa e equânime dos resultados sociais.

“The woman question” busca verificar os impactos das normas sobre as mulheres, explorando a desproporcionalidade que medidas políticas e jurídicas possuem na vida das mulheres. Também pode ser um método adequado para se pensar nas medidas reparatórias que previnam violências contra mulheres nos espaços públicos ou em decorrência de suas posições políticas.

Não há transição sem mulheres para repensar e reconstruir a democracia social no direito e na política. A partir do olhar de gênero, a justiça de transição pode e deve ganhar novos contornos. Fazer a pergunta “the woman question” pode ser um método inicial para os debates sobre interpretação constitucional feminista e sobre a incompletude do processo de justiça de transição no Brasil.

O segredo dos olhos e de dados de criminosos do passado não precisam de abrigos e esquecimentos institucionais na democracia. As mães argentinas e brasileiras e de todas as partes, espalhadas em ruas, praças e favelas, estão aí para exigir justiça, memória e verdade.

Inês Virgínia P. Soares éDesembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 3a Região. É mestre e doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo.

Melina Girardi Fachin é advogada e professora associada dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Fez estágio de pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra no Instituto de direitos humanos e democracia (2019/2020). Doutora em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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