A violência armada contra crianças e adolescentes no país

Ensaio

A violência armada contra crianças e adolescentes no país
Foto: Ueslei Marcelino/REUTERS - 23/01/2017

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Ana Potyara, Lucas José Ramos Lopes e Nayraline Barbosa de Oliveira


26 de junho de 2022

Ataques produzem dados alarmantes, mas não mobilizaram o poder público na priorização de investimentos em intervenções preventivas

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Em um dia comum na sua rotina, Alice, de apenas 4 anos, saía da escola juntamente com sua mãe quando “uma bala perdida” a encontrou. Mais uma vez no Brasil, um projétil ejetado de uma arma de fogo atinge uma criança negra, pobre e moradora da periferia. Como Alice, só no Rio de Janeiro, mais de 100 crianças foram baleadas nos últimos cinco anos e pelo menos 30 delas morreram, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. A história de Alice vem se repetindo cotidianamente nos noticiários, apontando o rosto de quem mais morre neste país pela violência armada.

De muitos ângulos se pode analisar o caso. Alguns dirão que Alice e sua mãe estavam no lugar errado e na hora errada, quase repetindo um mantra social que subtrai fatos objetivos para dar lugar a uma explicação simplista, que narra um projétil viajando voluntariamente pelo ar e decidindo, por si só ou força do destino, aterrizar violentamente na cabeça de uma criança de 4 anos.

O fato é que o trajeto de Alice da escola para sua casa não era seguro. “Nenhum lugar é”, retrucará alguém decidido que nada se pode fazer. Talvez quem reclama naturalizar a violência armada contra crianças e adolescentes, como se fosse um fenômeno comum e de baixa prevalência, certamente não se deu conta da seletividade que acompanha a estatística. Por que alguns lugares são menos seguros e por que alguns corpos são mais baleados? Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, crianças e adolescentes vítimas da violência letal são majoritariamente negros: 63% das crianças de 0 a 9 anos e 81% dos adolescentes de 15 a 19 anos.

A violência armada contra crianças e adolescentes no país, embora produza dados alarmantes, ainda não foi suficiente para mobilizar o poder público na priorização de investimentos em intervenções preventivas. Entre 2017 e 2021, 35 mil crianças e adolescentes foram vítimas de mortes violentas e, dentre esses números, 86% dessas mortes, entre pessoas entre 10 e 19 anos, ocorreram por armas de fogo. Entre 2017 e 2019, o Estado brasileiro, justificado na exclusividade do uso legítimo da força, matou ao menos 2.215 crianças e adolescentes, deflagrando um sistema de segurança e justiça marcado pela seletividade na repressão criminal. Levantamento do Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que, em 2020, nos 24 estados em que há dados (exceções são BA, DF e GO), um total de 787 mortes de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram identificadas como mortes decorrentes de intervenção policial. Segundo o estudo “Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade social”, realizado pelo Instituto Sou da Paz, crianças e adolescentes negras de até 14 anos morrem 3,6 vezes mais por armas de fogo do que crianças brancas.

‘A história de Alice vem se repetindo cotidianamente nos noticiários, apontando o rosto de quem mais morre neste país pela violência armada.’

O dever constitucional do Estado de proteger, com absoluta prioridade, crianças e adolescentes tem sido sistematicamente descumprido. Na contramão do que preconiza a Convenção Internacional sobre Direitos das Crianças, resoluções do Conselho de Segurança da ONU e o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado brasileiro segue usando violência, justificada como uso legítimo da força, portanto, juridicamente procedente, sem qualquer empenho na formulação de protocolos operacionais e procedimentais que normatizam a atuação das forças de segurança em áreas sensíveis e com a circulação de crianças e adolescentes. Esse tema é um dos focos de atuação da Agenda 227, movimento que reúne mais de 140 organizações da sociedade civil, criado para colocar os direitos das crianças e adolescentes no centro do debate eleitoral de 2022.

Para construir territórios mais seguros para crianças e adolescentes é imperativo questionar o modelo baseado na repressão policial e centralizado no poder executivo estadual. Importa uma maior integração entre o poder executivo local, o sistema de justiça, as forças de segurança e a rede de proteção, além de uma política intersetorial de prevenção.

A violência armada e o racismo produzem uma consciência social cruel, que invisibiliza os corpos infantis pretos mortos ou feridos e que poucas vezes tiveram lugar nos discursos eloquentes dos congressistas. Em matéria legislativa sobre violência contra crianças e adolescentes, quase tudo tem caráter punitivo e pós-violatório; raramente discute-se leis robustas e orçamento público exclusivo para prevenção e enfretamento da violência armada. Definitivamente somos um país que, depois que mata, procura culpados, viciado em uma visão de política pública inefetiva e inexperiente em termos de prevenção.

Ana Potyara é advogada, diretora administrativa financeira da Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) e membro do grupo Executivo da Agenda 227.

Lucas José Ramos Lopes é ponto focal da Coalizão Brasileira pelo fim da violência contra crianças e adolescentes. Mestre em direitos humanos e políticas públicas e membro do grupo Coordenador da Agenda 227.

Nayraline Barbosa de Oliveira é cientista social, especialista em políticas públicas, infância e juventude.

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