O que uma lei pode fazer? Pode instituir novas proteções sociais, pode incentivar a produção de bens, pode detalhar mudanças legais já feitas– ou mesmo reformá-las, criar novas obrigações e muito mais. Diz-se que a voz dos cidadãos vem dali. Do Congresso Nacional.
É lá que são aprovados juízes para o Supremo Tribunal Federal, embaixadores e outras autoridades, a partir de motivação do Poder Executivo.
Sabemos, por outro lado, que o sistema legal do Brasil está baseado em produção contínua e massiva de leis, decretos e afins. Acrescentando, ainda, as medidas provisórias.
Mas continuamos nosso dia a dia com as leis vigentes. Um aspecto deste sistema normativo dá impulso a uma singularidade brasileira: “tem lei que pega e tem lei que não pega”.
Paralelamente a esta singularidade, o Estado brasileiro passou por um início de reforma que, inclusive, criou as chamadas Agências Reguladoras. As primeiras vêm com as privatizações dos monopólios naturais de telefonia, energia elétrica e petróleo– Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis).
Essas autarquias especiais têm características próprias: são instituições com autonomia técnica, financeira e administrativa, assim como diretores com mandato formal.
A primeira agência vinculada ao Ministério da Saúde– a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) – herdou toda a Secretaria de Vigilância Sanitária do próprio Ministério da Saúde, isto é: já nasceu com uma base de funcionamento e conhecimento teórico-prático das diversas atribuições que passa a regular. Era uma inovação, para a área de saúde, contar com autarquia especial deste estilo.
Em 1998/99 com a Lei 9656 , o mercado de saúde suplementar e as próprias instituições governamentais viviam o fracasso do modelo bipartido de regulação: Ministério da Fazenda x Ministério da Saúde. Tinha tudo para não dar certo. E não deu.
A Regulação do Mercado de Planos e Seguros de Saúde, produtos da mesma estirpe, perdia um tempo enorme com as superposições evidentes entre suas áreas de atuação. Isto é, o comando só podia ser exercido diante de uma regulação que trouxesse vinculação firme com conceitos de saúde e econômicos que interagissem.
O ano de 1999 – pré- ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar – já trouxe um aprendizado e conhecimento do setor. Mas muito havia a ser aprendido, feito e construído. E a ANS nasce com o enorme desafio de transformar a Lei 9656/98 em realidade.
Isto é: fazer viver a regulação– conhecer a estrutura de funcionamento de instituições tão díspares como grandes conglomerados internacionais e grandes empresas de capital aberto, tanto quanto as Santas Casas. E mais, trazer à vida o já regulamentado pelo primeiro Consu (Conselho Nacional de Saúde Suplementar) – composto majoritariamente por dirigentes do Ministério da Saúde, com a valiosa participação dos Ministérios da Fazenda e da Justiça.
O mercado de saúde suplementar e as próprias instituições governamentais viveram nos anos 1990 o fracasso do modelo bipartido de regulação. Tinha tudo para não dar certo. E não deu
Como dar vida e solidez aos regramentos de temas assistenciais essenciais ao funcionamento do novo mercado– que iniciaria em 2 de janeiro de 1999? Muito se fez durante esse ano de transformação. Trabalhávamos com uma realidade nova, mas evoluímos com a força do Ministério da Saúde. Toda a produção da ANS avançou – fiscalização em saúde contratos analisados, criação da primeira Tabela de Procedimentos para ressarcimento e cobertura obrigatória, pesquisas setoriais com pesquisadores de primeira linha contratados pelo Reforsus (Projeto de Reforço à Reorganização do Sistema Único de Saúde) e tantas outras conquistas. Instalamos, ainda no Ministério, a primeira Ouvidoria da Saúde Suplementar.
A ANS tratou, com todo o empenho, de não deixar que as letras da Lei 9656 sucumbissem à toda irresignação de parte do setor e mesmo de parcela do governo – que dizia que a regulação iria fazer o mercado de planos e seguros desaparecer. Desta forma, a batalha foi para que as letras da lei continuassem vivas.
Somente em setembro de 1999 o governo decidiu que este modelo “bipartite” realmente não funcionaria. E decidiu criar a ANS, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, ainda no final do ano, por medida provisória convertida na Lei 9961/00, vinculada ao Ministério da Saúde.
Servidores e colaboradores abraçaram essa verdadeira cornucópia de desafios e transformações: fomos em frente, dando vida às Resoluções Consu e aos novos normativos elaborados pela própria ANS, conforme novo marco legal instituído. Voltamos as atenções para criar as condições necessárias– como a inclusão de transtornos psíquicos na cobertura, a definição de modalidades de planos, as regras para urgência e emergência, entre tantas outras ações que garantiram o monitoramento permanente do mercado.
Mais recentemente outras ações vieram e desde 2020 contamos com o Boletim Covid e tantas outras publicações periódicas.
Letra viva– inclusive porque a ANS, mesmo antes de exigências legais, já fazia consultas e audiências públicas. Não se enganem com aqueles que dizem que a “lei dos planos é boa, a agência é que é ruim”. Não se enganem. Os avanços da Lei 9656/98 que incluiu coberturas a todas às doenças só estão vivas por conta da ANS.
A Letra da Lei só vive quando compreendemos e transformamos a realidade. E a Lei dos Planos de Saúde só vive porque existe uma instância de regulação que a faz realidade. Enfraquecer a ANS é transformar a Lei 9656 em letra morta.
João Barroca é médico formado pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ex-diretor ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Atualmente é Assessor da Presidência da ANS.