Há boas e más notícias para milhares de pacientes do Brasil que esperam avanços na saúde pública e para a promoção de acesso mais fácil ao tratamento com produtos à base de cannabis para uso medicinal. Começo pelas boas: até pouco tempo restrito ao campo corajoso e aguerrido de especialistas e ativistas, espalha-se hoje por todo o Brasil um conjunto de projetos de lei já aprovados, sancionados, ou em fase avançada de tramitação nas casas legislativas que, em estados e municípios, têm aberto caminho para garantir o acesso aos produtos derivados da planta. Em todas as regiões do país, pode-se enxergar o fortalecimento da agenda, com estados e municípios regulamentando a matéria para políticas locais e regionais de cannabis.
No Paraná, por exemplo, a chamada Lei Pétala, promulgada neste início de fevereiro, deu um passo importante para desburocratizar o acesso à medicamentos autorizados pela Anvisa – produtos à base de CBD (canabidiol) e de THC (tetrahidrocanabinol) para tratamento de doenças, síndromes e transtornos de saúde. Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou no fim de janeiro a lei de acesso à cannabis medicinal no SUS do estado depois que a Assembleia Legislativa aprovou em dezembro o projeto de autoria de um conjunto de deputados e deputadas, que teve o apoio de mais de 41 mil pessoas por meio de petição online.
No mesmo período e na mesma linha, a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), sancionou o projeto de lei de autoria da deputada Isolda Dantas (PT), que não só dispõe o direito ao tratamento de saúde com produtos de cannabis e seus derivados como incentiva a pesquisa sobre o uso medicinal e industrial da cannabis e a divulgação de informações para a população e profissionais da área da saúde. No Rio de Janeiro, uma lei estadual de 2019 permite o fornecimento de canabidiol para portadores de epilepsia. No Mato Grosso, deputados estaduais derrubaram veto do governador, e o governo do estado reservará R$ 30 milhões para a compra de medicamentos. No vizinho Mato Grosso do Sul e no Amazonas, projetos começaram a tramitar com força nas assembleias legislativas no início do ano. Capitais como Goiânia (GO) ou cidades do interior como Volta Redonda (RJ), Braço do Norte (SC) e Ribeirão Pires (SP) já têm leis próprias.
Bons ventos espalham a agenda da cannabis. É a boa notícia fabricada graças ao esforço de muita gente – vereadores, deputados estaduais, pacientes, organizações da sociedade civil, especialistas, ativistas, médicos, advogados, pessoas que acreditam no uso medicinal da cannabis como opção eficaz para socorrer pacientes com parkinson, alzheimer, epilepsia, autistas, portadores de síndromes raras ou doenças nada raras, como depressão, ansiedade, distúrbios do sono, dores crônicas, fibromialgia, entre outras. É um terreno onde há muito a avançar para superarmos o medo, o preconceito e a desinformação.
A má notícia – ou, vá lá, conforme seu otimismo, uma notícia ainda represada – é que a agenda prossegue na fila de espera de uma lei federal. Está parado na Câmara dos Deputados, por exemplo, o projeto de lei número 399, de 2015, que regulamenta os usos medicinal e industrial da cannabis – ainda que não contemple o autocultivo, pilar fundamental para a popularização do acesso ao óleo extraído da plantacannabis sativa.
Só a facilitação do fornecimento ainda nos deixa dependentes de marcas estrangeiras, sem fomentar a indústria nacional – único caminho para baratear medicamentos à base de cannabis
Um avanço na política só virá mesmo com a aprovação em nível federal. Sua lacuna tem efeito sobre a insegurança jurídica, uma vez que o PL 399/2015 traz uma espécie de regulamentação para a produção, prevendo a possibilidade de cultivo para empresas e associações de pacientes. Em outras palavras, avançamos em estados e municípios no terreno do fornecimento, mas não na produção, ainda que alguns estados, como Pernambuco e Alagoas, tenham leis estaduais que preveem a possibilidade de cultivo por associações – mas que sob o ponto de vista da eficácia jurídica e social da norma, não possuem efeito prático algum, uma vez que o plantio fica condicionado aos casos autorizados pela Anvisa e por legislação federal: o que efetivamente inexiste. Ou seja, não há inovação no campo da competência legislativa dos estados para legislar sobre tal matéria.
Vale dizer que só a facilitação do fornecimento ainda nos deixa dependentes das marcas estrangeiras com produtos registrados no país, sem necessariamente fomentar a cadeia de produção da indústria nacional – o caminho por meio do qual decididamente baratearemos o medicamento.
Hoje existem mais de 20 produtos registrados na Anvisa, com autorização para que sejam armazenados e distribuídos nas drogarias brasileiras. Como não há autorização para cultivo os custos são elevados – ou porque empresas importam o produto para registrar e vender nas drogarias, ou porque importam insumos farmacêuticos para depois finalizar o produto em solo brasileiro, o que também não contribui com o efetivo barateamento do custo final.
E mais: embora existam essas leis já promulgadas que mencionei, a eficácia delas depende em grande parte de medidas adotadas pelo Poder Executivo, em especial das secretarias de Saúde. Na maioria dos casos, vemos leis promulgadas que facilitam o acesso, mas este continua sendo restrito por inércia dos governos na sua implementação. O caminho é de barro.
O Congresso precisa fazer sua parte, e o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também. Essa é uma agenda que necessariamente requer o envolvimento dos Ministérios da Saúde, da Justiça, da Economia, do Meio Ambiente e da Agricultura. Em algumas dessas pastas sabemos que há pessoas – de ministros e ministras ao corpo técnico – com conhecimento e abertura suficientes para acessar dados, discussões e avanços científicos, e experiências internacionais bem-sucedidas, inclusive em países vizinhos. E é preciso envolver os setores do agronegócio, da indústria, da construção civil, dos cosméticos e da alimentação.
É possível haver mais convergência do que se supõe. E rapidamente.
João Gabriel de Souza de Carvalho é sócio do escritório Souza de Carvalho Sociedade de Advogados, cursa pós-graduação em Direito Regulatório na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, auxilia pacientes no acesso ao tratamento à base de cannabis e assessora empresas e associações em práticas de compliance, operações e estratégias voltadas ao mercado da cannabis.