Quando o campo da filantropia fala sobre superar a desigualdade, suas lideranças costumam olhar para fora, na busca por respostas a serem encontradas no próximo investimento, organização ou tecnologia da moda. Entretanto, a filantropia somente superará de verdade a desigualdade em escala global quando enfrentar, em primeiro lugar, o desequilíbrio das relações de poder dentro de seu próprio campo. Essa tarefa começa com o reconhecimento de que a maior parte de seus agentes surge da acumulação injusta da riqueza por meio da colonização e escravização de pessoas indígenas e negras ao longo dos séculos, e termina com a transformação da filantropia para que sirva a reparar os danos desse legado. O compromisso com esse caminho nos coloca em posição de transformar a desigualdade e encontrar uma “cura” para nossas comunidades.
De início, é preciso entender como nosso passado construiu as bases para a desigualdade do presente. Desde o século 15, a supremacia branca tem servido como justificativa para o processo de colonização, apoiada por uma ideia de missão divina. Assim, o imperialismo branco europeu foi, ao longo dos séculos, marchando pelo mundo acumulando e consolidando recursos e riquezas – cometendo genocídio, escravizando pessoas e profanando a Terra. Dos EUA – país que chamo de lar – até o Brasil, descendentes de colonizados e de colonizadores ainda estão vivendo os efeitos desse processo.
Descrevo esse fenômeno como o vírus colonizador, um vírus que todos nós – indivíduos, instituições e sistemas humanos – carregamos. Independente se descendentes sobreviventes de povos colonizados ou de povos colonizadores, todos nos adaptamos e transmitimos essas adaptações por meio de nossos genes ao longo de gerações. Danos da colonização são ditados em novos formatos por instituições, governos e empresas. Nesse contexto, alguns filantropos independentes e de primeira geração vêm tentando fazer as coisas de um jeito diferente, mas, mesmo assim, esses atores não estão imunes ao vírus colonizador (mesmo que os recursos financeiros de que dispõem não sejam dinheiro antigo). Portanto, as organizações atuando em causas da população negra e dos povos originários, na linha de frente de um trabalho transformador em todo o mundo, precisam competir por uma quantidade de recursos artificialmente pequena dentro dos valores colocados à disposição no campo da filantropia, sendo que muito mais é necessário.
Não precisa ser assim. Nosso setor pode parar de transmitir o vírus colonizador para a próxima geração de líderes e instituições e redistribuir recursos para restaurar o equilíbrio. E é isso que chamo de usar o dinheiro como uma medicina, ou um remédio.
Para a maioria das pessoas, a medicina, o remédio, é algo usado para tratar ou curar uma doença. Às vezes o termo se refere a todo o campo, ou seja, a medicina como o espaço onde se encontram hospitais, farmácias, médicos e assim por diante. Nas tradições dos povos originários, no entanto, a medicina é uma forma de alcançar o equilíbrio. Uma pessoa no papel de curandeiro indígena não apenas cura doenças, mas procura restaurar a harmonia ou estabelecer um estado de ser. A prática da medicina não se limita apenas às mãos desses indivíduos. Todos são bem-vindos a participar, e o envolvimento com a medicina faz parte da experiência da vida diária.
Compreendo que possa haver certo ceticismo em relação a essa ideia, uma vez que o dinheiro está no cerne de tantos danos que vemos no mundo. Mas isso ocorre porque usamos os recursos financeiros de maneira equivocada. O dinheiro pode ser uma ferramenta de amor, facilitar relacionamentos e nos ajudar a prosperar, ao invés de apresentar-se como instrumento de controle, conquista e colonização.
Para usar o dinheiro como medicina, aqueles que tradicionalmente possuem riqueza precisam primeiro reconhecer a dor causada pelo seu acúmulo e pela colonização. Precisam abrir as feridas, passar por um período de luto, e pedir desculpas. Precisam ouvir aqueles que muitas vezes foram silenciados e excluídos, e que agora lideram movimentos para curar o mundo – precisam ouvir as comunidades indígenas e a população negra.
A filantropia somente superará de verdade a desigualdade em escala global quando enfrentar, em primeiro lugar, o desequilíbrio das relações de poder dentro de seu próprio campo
Recentemente, minha equipe no projeto Decolonizing Wealth (Decolonização da Riqueza) reuniu-se com os responsáveis do projeto da iniciativa PIPA chamado “Democratizando o Investimento Social Privado no Brasil”, durante uma visita dessas lideranças aos EUA para trocar informações e fazer conexões em relação aos esforços que compartilhamos. Sobre seu trabalho no Brasil, os representantes da iniciativa PIPA alertaram:
“É urgente chamar a atenção para o impacto que as organizações de base geram no Brasil. O campo da filantropia e do investimento social privado precisa reconhecer a importância das periferias no contexto nacional, não apenas como beneficiárias, mas como protagonistas da mudança, consolidando assim um caminho de efetiva transformação social, comprometido com a redução da desigualdade”.
Portanto, no Brasil e no mundo, as populações indígena e negra forçadamente deixadas à margem da sociedade, são aquelas que têm, por sua perspectiva e resiliência, as melhores soluções para que encontremos a cura da desigualdade. Essas comunidades estão liderando um trabalho transformador e recebendo somente uma pequena fração do investimento social privado disponível, sendo que deveriam receber os recursos necessários para de fato prosperar e estar à frente de todas as novas esferas de tomada de decisão.
Para superar a desigualdade, precisamos abandonar a ideia de que apenas as lideranças da filantropia tradicional têm as soluções. Ao compreender que o fundamento da filantropia está no acúmulo injusto de riqueza, tais lideranças precisam mudar seus processos de tomada de decisão. Só então poderão iniciar um trabalho de necessária reconciliação, redistribuindo recursos para comunidades indígenas e negras sem condições e apoiando sua autodeterminação. Se as lideranças que dirigem o investimento social privado desde sua origem estiverem realmente comprometidas em lidar com a desigualdade, elas terão que abrir mão de algum poder, controle e recursos, em um processo onde todas as nossas comunidades poderão prosperar.
Edgar Villanueva é autor do best-seller Decolonizing Wealth, ativista e especialista em raça, riqueza e filantropia. Diretor do Decolonizing Wealth Project e Liberated Capital, aconselha organizações nacionais e internacionais, incluindo filantropos e empresas Fortune 500, sobre estratégias de impacto social e investimento para promover a equidade racial. Participa do 12º Congresso GIFE – Desafiando Estruturas de Desigualdades, de 12 a 14 de abril.