Uma trégua para sonhar e reconstruir a democracia

Ensaio

Uma trégua para sonhar e reconstruir a democracia
Foto: Carla Carniel/Reuters - 9.jan.2023

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Flávia Pellegrino


19 de maio de 2023

Tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 constitui o ápice da tragédia anunciada, deixando claro que a eleição de um presidente democrático em 2022 não interromperia as ofensivas golpistas no país

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No decorrer dos últimos dez anos a democracia brasileira foi profunda e reiteradamente desafiada, questionada e posta em xeque, em múltiplas formas e ocasiões. Os acontecimentos e elementos que impulsionaram a ininterrupta turbulência democrática desta década são inúmeros, seus efeitos perduram em 2023 e as transformações por ela provocadas delineiam o capítulo brasileiro do fenômeno global de recessão dos sistemas democráticos. Esse processo em curso em nosso país e em tantos outros ao redor do mundo tornou evidentes as profundas fragilidades de tais regimes e a necessidade de lutar pelo aprimoramento e fortalecimento das democracias.

Trabalhar para reverter o processo de erosão democrática em marcha requer compreendê-lo. Embora a profusão de complexidades seja notável no caso brasileiro, três grandes marcos factuais deste processo auxiliam o entendimento de seu desenvolvimento: as manifestações de junho de 2013, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro.

Com a eclosão da maior onda de contestações sociais e manifestações políticas da história da nossa democracia em junho de 2013, assistimos à expressão de insatisfações generalizadas e à emergência de um processo de indignação coletiva alicerçada na rejeição absoluta da política nacional, seus atores e suas instituições. Foi justamente esse contexto de ampla contestação da própria democracia brasileira que deu forma e conteúdo a um novo ciclo de politização de parte importante da população do país, dando a tônica do que estaria por vir.

Não é à toa que a combinação entre um ambiente político e social caracterizado por altíssima polarização e a emergência de uma profunda indignação frente às flagrantes falhas do sistema democrático brasileiro tenha tornado possível a derrubada da presidente reeleita três anos depois. Dilma Rousseff sofreu o impeachment em um processo extremamente controverso, marcado por uma cisão profunda na sociedade a respeito da leitura desse processo, tornando inquestionáveis as agudas fissuras do regime democrático brasileiro, tanto da perspectiva da sua estrutura institucional quanto do tecido social.

A vida político-democrática no Brasil foi tomada por um alto nível de descrédito e instabilidade. A partir de 2018 também foi possível notar uma grave escalada de tensão, intolerância e violência que passava a deteriorar e ameaçar de forma clara a vida democrática no país. O brutal assassinato de Marielle Franco escancarou o tamanho da fragilidade das bases da cultura democrática na sociedade brasileira e anunciou que o país mergulharia em um período de gravíssimas e explícitas atrocidades antidemocráticas.

Trabalhar para reverter o processo de erosão democrática em marcha requer compreendê-lo

De fato, meses depois o Brasil elegeu à presidência uma figura aberta e historicamente avessa aos valores mais elementares de uma sociedade democrática. Jair Bolsonaro logrou catalisar e incorporar o sentimento de rechaço do sistema político que emergira em junho de 2013 e tornar vitorioso um projeto de poder hostil a qualquer princípio republicano e humanista, alicerçado na promessa de implosão do sistema democrático brasileiro.

A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 constitui o ápice da tragédia anunciada da democracia brasileira, deixando claro que a eleição de um presidente democrático em 2022 não interromperia as ofensivas anti-democráticas no país. Engana-se, portanto, quem acredita caminharmos sobre solo fértil para semear e fazer a democracia voltar a florescer vigorosa e tranquilamente no Brasil. Porém, igualmente equivocados estão aqueles que se negam a enxergar a importante janela de oportunidade aberta neste novo ciclo político-democrático, em que passa a ser possível e vital recobrar o fôlego, mirar adiante e guiar-se pela indagação: qual é a democracia que almejamos?

Há pelo menos uma década o Brasil está imerso nesse intenso processo de crises democráticas que se acumulam e não se vislumbra saída no horizonte. Por isso, hoje é urgente resgatarmos nossa capacidade de propor, criar, idealizar e construir a democracia que precisamos e merecemos ter em nosso país. Talvez nunca tenha sido tão necessário contra-atacar, sair da retaguarda, da postura reativa e minimalista imposta pelo recente contexto de francos e sistemáticos ataques ao Estado Democrático de Direito. Há tempos não havia brechas reais para se criar mecanismos de fortalecimento das nossas instituições, ferramentas de proteção do regime democrático, estratégias de aprimoramento do sistema político e para se galgar avanços concretos na ampliação e garantia de direitos e liberdades vitais a qualquer sociedade que se pretenda democrática.

Embora tranquilidade não caracterize o contexto político e social brasileiro atual, estarmos sob um governo do campo democrático significa muito no Brasil de hoje. Não por ser sinônimo de estabilidade ou enraizamento democráticos, não é, mas por permitir que as disputas políticas recobrem alguma normalidade e que a sociedade volte a gozar de liberdades cerceadas entre 2019 e 2022.

As batalhas seguirão árduas e numerosas, decerto, mas as tréguas precisam ser bem aproveitadas. A força propulsora desse processo reside, sem dúvida, na sociedade civil brasileira, cuja luta pela democracia é histórica, assim como sua capacidade singular de construir diálogos, propostas, conhecimento e caminhos promotores de uma sociedade efetivamente justa, equânime, inclusiva, pacífica e que não prive um só indivíduo de direitos e liberdades fundamentais.

É por isso que, a partir de hoje, as organizações que compõem a rede do Pacto pela Democracia ocuparão semanalmente este espaço com a intenção de estimular, ampliar e qualificar o debate público acerca das questões essenciais e incontornáveis para avançarmos na consolidação da estrutura e da qualidade do nosso sistema democrático. Que possamos inspirar a sociedade brasileira a resgatar sua capacidade coletiva de sonhar e trabalhar cotidiana e incansavelmente pela democracia que o Brasil precisa, merece e, um dia, terá.

Flávia Pellegrino é jornalista, formada pela PUC-SP, mestre em ciência política pela Universidade de Sorbonne, na França, com pesquisa relacionada sobre os movimentos de contestação social que eclodiram no Brasil a partir de junho de 2013. Atualmente é coordenadora executiva do Pacto pela Democracia.

A Democracia que queremosé uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.

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