Justiça, reconhecimento e democracia são os três pilares fundamentais da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), agenda da ONU que influencia a formulação de políticas públicas no Brasil e em outros países. Por aqui há um consenso entre movimentos da sociedade civil e instâncias governamentais de que mulheres negras devem liderar a implementação dessas agendas, dada sua posição de extremada iniquidade em comparação com outros grupos sociais.
A tradição dos movimentos de mulheres negras no Brasil de apostar em uma agenda positiva de igualdade através do acesso à educação, da valorização da cultura afro-brasileira e da coleta de dados pelo Estado sobre a população negra reforça a importância dessa liderança. O poder Executivo tem desempenhado um papel central, incentivando a autodeclaração correta de pessoas negras no Censo Demográfico, apoiando cotas nas carreiras e universidades federais e elevando a pasta de Igualdade Racial ao status de Ministério, com Aneielle Franco no comando, além das indicações de outras ministras e ministros negros reconhecidos pelos movimentos negros como aliados comprometidos com suas agendas.
Desde meados da última década, houve um aumento nas discussões sobre identidades, a eliminação de estereótipos e o respeito à humanidade e à cidadania de pessoas negras. A culminância desse processo deu-se mais ou menos há cinco anos, quando uma série de eventos denunciou a urgência de se avançar nos outros dois temas destacados pela ONU na grande agenda internacional para pessoas negras: justiça e democracia. O feminicídio político da vereadora Marielle Franco em 2018 e o assassinato de George Floyd em 2020 foram catalisadores para a mobilização de movimentos liderados por pessoas negras, especialmente mulheres.
Registro esses dois eventos trágicos como sintomas de uma inflexão, um ponto de não retorno derivado de uma tormenta que estava em curso desde muito antes. Já restava evidente que apenas o aumento de aparições em propagandas de televisão, rótulos de bens de consumo e produtos para entretenimento não eram suficientes para assegurar direitos básicos à população negra. Para realocar indivíduos historicamente subalternizados, era preciso ir além e se debruçar em soluções capazes de superar, na prática, esse aprisionamento pelo imaginário social.
A partir da compreensão de que reconhecimento e visibilidade têm a ver, afinal, com cidadania, argumenta-se de maneira ainda mais enfática pela incorporação das contribuições das culturas negras na institucionalidade, visando a construção de uma sociedade mais justa. Os saberes, práticas, experiências e plataformas políticas consolidadas por mulheres negras como Marielle devem ser reconhecidos como patrimônio legítimo da política brasileira. No entanto, como alcançar esse objetivo em um contexto em que o Estado brasileiro ainda não foi capaz de solucionar o crime que ceifou a vida da vereadora há cinco anos? Justiça e democracia estão no centro do caso Marielle, e sua família exige e merece uma conclusão. A democracia brasileira não pode, sob nenhuma hipótese, prescindir da resolução deste crime brutal.
O racismo institucional corrompe o sistema de Justiça no Brasil, violando a igualdade perante a Lei e inviabilizando o Pacto Democrático. Importante fixar quão fundamental é o debate sobre o reconhecimento e as identidades no Poder Judiciário – aqueles que decidem sobre as vidas das maiorias são os que representam o menor percentual demográfico e socioeconômico da sociedade. Isso se reflete, por exemplo, no aumento significativo do encarceramento de mulheres negras. Outras questões como direitos sexuais e reprodutivos, descriminalização de drogas e combate ao perfilamento racial como prática institucional são decididas por pessoas que não são alvo dessas políticas. Por isso, testemunhamos nos meses iniciais do ano de 2023 uma intensa mobilização social em favor da indicação de pelo menos uma jurista negra para o Supremo Tribunal Federal, responsável por apreciar as matérias supracitadas.
‘Os saberes, práticas e experiências consolidadas por mulheres negras como Marielle devem ser reconhecidos como patrimônio legítimo da política brasileira’. Leia no ensaio de Tainah Pereira, no quarto texto da série ‘A democracia que queremos’.
O Judiciário tem avançado pouco em medidas que garantam a não reprodução de violências raciais, apesar de algumas decisões favoráveis no STF. Há ainda tribunais em todo o país que utilizam o perfilamento racial como base para condenações de pessoas negras, além da enorme dificuldade de acesso à Justiça por quilombolas, ribeirinhos, moradores de favelas e comunidades mais afastadas dos centros urbanos. O enfrentamento dessas questões deve caminhar em paralelo à implementação de políticas de cotas raciais para o acesso à magistratura e outros cargos na Justiça.
Não que as leis, decretos, resoluções e portarias sejam suficientes para garantir a democratização do acesso a esses espaços. Nesta mesma quadra da história estamos acompanhando mais um atentado aos tímidos avanços de mulheres, negras e negros, indígenas e pessoas LGBTI+ na política institucional: a PEC 9/23, aprovada na CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania) da Câmara dos Deputados, anista os partidos políticos que não cumpriram com a cota de 30% de candidaturas de mulheres e que não fizeram a distribuição equânime de recursos para candidaturas de pessoas negras. Mais de 700 milhões de reais deixaram de ser investidos em candidaturas negras, contrariando amplo entendimento sobre a importância de assegurar condições mínimas de acesso e permanência desse grupo em espaços de poder e decisão.
Uma democracia sustentada por meio do protagonismo e liderança de mulheres negras não é apenas um desejo da militância, mas uma oportunidade de enriquecer as políticas públicas. Só é possível dar conta de forma abrangente e contundente das graves injustiças em escala nacional, internacional e planetária acrescentando a amplitude e radicalidade da imaginação política de mulheres negras ao dia-a-dia da política. A Carta da Marcha de Mulheres Negras de 2015 é um ótimo exemplo de como mulheres negras têm construído soluções tangíveis na gestão sustentável dos recursos naturais para as gerações atuais e futuras, na construção de uma sociedade pacífica, justa e inclusiva, com prosperidade e dignidade para todas as pessoas.
Mulheres negras lideranças coletivas têm buscado ocupar a institucionalidade para estruturar um projeto de poder popular, falando a verdade e reconquistando a confiança pública nas instituições. É hora de darmos passos concretos para resolver a crise de representatividade e apoiá-las na política. Oferecendo oportunidades de treinamento e orientação, mais redes de apoio, aumento do acesso a recursos materiais e humanos (dentro dos partidos, inclusive) e cuidado digital e psicossocial, contribuímos para que mais mulheres negras a alcancem seus objetivos na política, com efeitos multiplicadores benéficos para toda a sociedade.
Tainah Pereira é bacharel em Relações Internacionais, Mestra em Ciência Política pela UNIRIO e atualmente está à frente da Coordenação Política do Movimento Mulheres Negras Decidem
A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.