A luta anticorrupção no Brasil não pode ser um tabu

Ensaio

A luta anticorrupção no Brasil não pode ser um tabu
Foto: Sergio Moraes/Reuters - 06.mai.23

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Nicole Verillo


28 de julho de 2023

Tinha 15 anos quando passei a andar com escolta policial porque minha família havia sido ameaçada por denunciar um esquema de desvio de merenda escolar em Ribeirão Bonito (SP)

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Tinha 15 anos quando passei a andar com escolta policial porque minha família havia sido ameaçada por denunciar um esquema de desvio de merenda escolar em Ribeirão Bonito, cidade de 12 mil habitantes no interior de São Paulo. Lembro do impacto de entender que as crianças da cidade estavam há meses comendo água com fubá por conta de um esquema de desvio de verbas públicas que chegava, à época, a R$ 1 milhão.

Vinte e um anos depois, hoje o Brasil tem marcos legais e institucionais fundamentais para avançar na luta contra esquemas de corrupção como o de Ribeirão Bonito, como a criação da Controladoria-Geral da União (2003), a Lei de Acesso à Informação (2011), a Lei Anticorrupção (2013) e tantas outras reformas legais que contribuíram para aprimorar a capacidade e a autonomia das instituições de controle, e para deixar de normalizar a impunidade de poderosos. Além disso, surgiram muitos movimentos e organizações da sociedade civil dedicadas à promoção da transparência e da integridade pública.

Durante o governo anterior, no entanto, assistimos a um processo de desmanche acelerado dos marcos legais e institucionais anticorrupção, e o Brasil sofreu uma degeneração sem precedentes de seu regime democrático, culminando nos ataques de 8 de janeiro à Praça dos Três Poderes.

Jair Bolsonaro foi eleito, em 2018, sequestrando o discurso anticorrupção. Apesar de sua trajetória política de três décadas – em que jamais apresentou projeto de lei para o enfrentamento da corrupção, participou de investigação parlamentar ou denunciou qualquer ato de corrupção – ele conseguiu se vender ao eleitorado como um “outsider” comprometido com a luta contra a corrupção. A família Bolsonaro esteve, desde o início do governo, acuada por investigações que levantaram fartas evidências de corrupção e outros crimes. Em busca de impunidade, o então governo promoveu o desmanche dos arcabouços legais e institucionais anticorrupção que o país havia levado décadas para construir, através principalmente de ataques à independência de instituições como a Procuradoria-Geral da República, a Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal.

Ao mesmo tempo, desmontou qualquer possibilidade de responsabilização política com a compra do centrão através do orçamento secreto, o maior esquema de apropriação orçamentária para fins escusos de que se tem registro na história brasileira. O orçamento secreto perverteu a formulação de políticas públicas em áreas essenciais como saúde, educação e assistência social, retirando recursos de programas elaborados por técnicos para favorecer projetos de interesses eleitoreiros. Além disso, ao jorrar bilhões para municípios sem capacidade institucional de controle, pulverizou-se ainda mais a corrupção no país, potencializando fraudes e desvios em nível local, além de favorecer candidatos do “Centrão” e seus aliados, distorcendo a disputa das eleições.

Bolsonaro ainda solapou o controle social no Brasil através da redução drástica da transparência e do acesso à informação pública, do apagão de dados governamentais e de sigilos abusivos, da extinção dos espaços institucionalizados de participação social, da disseminação sistemática de “fake news” e do discurso de ódio por meio de canais oficiais, além de ataques permanentes, inclusive violentos, a ativistas, acadêmicos, artistas e jornalistas, principalmente mulheres.

Neste processo de destruição institucional, a vítima maior não foi a luta contra a corrupção, mas a democracia brasileira, que nunca esteve tão atacada e enfraquecida desde a ditadura militar no país.

Tinha 15 anos quando passei a andar com escolta policial porque minha família havia sido ameaçada por denunciar um esquema de desvio de merenda escolar

O presidente Lula tem credenciais democráticas incomparáveis às de seu antecessor, mas sua eleição não é suficiente para garantir que o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira atue com robustez. Os governos do PT, como todos os governos antecessores, estiveram envolvidos em grandes esquemas de corrupção, com graves consequências econômicas, sociais e ambientais, além de profundos danos à democracia. Por outro lado, foi durante as administrações de Lula e Dilma Rousseff que o Brasil mais avançou no fortalecimento de leis e instituições de enfrentamento à corrupção, com destaque para a defesa e ampliação do espaço cívico, com políticas públicas de fomento à transparência e à participação social.

Estamos em uma encruzilhada histórica em que podemos agravar injustiças estruturais ou aproveitar o momento de transformações para atacar os problemas pela raiz e garantir que meninas de 15 anos não precisem de escolta por denunciarem esquemas de desvio de merenda escolar. Quem levanta a bandeira da justiça social, mas é conivente com a corrupção, subestima a indignação da população. Indignação essa de uma parcela grande da população que sentiu sua confiança traída e encontrou a resposta num discurso populista forte e em soluções simplistas para o combate à corrupção, fazendo o país cair numa armadilha autoritária.

É fundamental que o governo Lula não ceda à tentação — e às pressões — para consolidar como novo padrão as práticas bolsonaristas de sujeição das instituições de controle aos interesses políticos, a opacidade quanto às informações públicas e os pactos de impunidade com o centrão.

A luta contra a corrupção é crucial para o desenvolvimento sustentável e socialmente justo, além de essencial para os esforços de resgate democrático. As próximas eleições presidenciais estão logo ali e é fundamental para a nossa democracia que a sociedade e as instituições brasileiras priorizem o significado fundamental da luta contra a corrupção: uma luta por direitos.

Nicole Verillo é gestora de políticas públicas, formada pela USP-SP, especialista em governança pública pela PUC-RS. É co-fundadora da Transparência Internacional – Brasil e gerente de apoio e incidência anticorrupção da organização.

A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.

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