O uso político disseminado de desinformação como arma política, como temos visto nos últimos anos no Brasil, afeta eleições, grupos sociais vulnerabilizados e até a saúde das pessoas. Certamente o tamanho do problema é grave e medidas estruturais – como a regulação – são necessárias e urgentes para fazer frente aos efeitos concretos dele. Achar que o combate à desinformação, por mais sucedido que ele seja, será suficiente para criar um ambiente de comunicação democrático no Brasil é, no entanto, uma ilusão.
Para avançarmos nesse sentido, precisamos pensar em pelo menos três frentes. Primeiro é preciso nos preocupar com a oferta de informação. É necessário que tenhamos informação séria e de qualidade sendo produzida. Isso engloba combater as fake news e as estratégias de falseamento dos fatos, mas também significa incentivar que a informação de qualidade seja constantemente produzida e disseminada. Isso implica em desenvolver formas de sustentabilidade de veículos jornalísticos já estabelecidos e também apoiar o surgimento de novos.
Achar que o combate à desinformação, por mais sucedido que ele seja, será suficiente para criar um ambiente de comunicação democrático no Brasil é uma ilusão
Além disso, não se trata só de falar de informação séria e de qualidade – em oposição à maré de desinformação –, mas é preciso ainda valorizar e incentivar a produção de informações que conectem as pessoas às suas realidades e as tornem mais empoderadas para agir enquanto cidadãs. Não à toa Izabela Moi e Nina Weingrill, em recente texto publicado na Stanford Social Innovation Review Brasil, defendem a “urgência de investir em ecossistemas locais de informação”. Elas argumentam que apenas assim conseguiremos enfrentar os desertos de notícias e, mais que isso, conectar as pessoas aos seus territórios através da informação, tornando-as cidadãos e cidadãs muito mais envolvidos em suas realidades.
Incentivar a boa produção de informação é, no entanto, apenas uma faceta do problema. Para que de fato essas informações produzam efeitos sociais, elas precisam ser lidas, apropriadas, disseminadas pelas pessoas e, para tanto, precisamos conhecer e lidar com hábitos de consumo de notícias que mudaram imensamente nos últimos dez anos. Não é apenas o clichê de que “hoje todo mundo se informa online”, é muito mais sofisticado que isso.
Hoje, é raro as pessoas irem até as notícias, é mais frequente que as notícias cheguem até elas. O consumo de informação se dá cada vez mais por plataformas sociais, do que direto nos sites de veículos de comunicação. Isso é um fenômeno que, em diferentes proporções, vem acontecendo em várias partes do mundo. A isso, soma-se uma especificidade brasileira – e de outros países do sul global – a importância central dos aplicativos de mensagem, como WhatsApp. Segundo o Digital News Report 2023, além de ser o aplicativo social mais usado pelos brasileiros, ele é também a principal fonte de notícias das pessoas. Isso acontece em uma realidade em que 64% das pessoas têm celulares pré-pagos (TIC Domicílios, 2022), muitos delas com pacotes de dados que não duram o mês inteiro.
No seu cotidiano, uma parcela significativa dos brasileiros fica “preso” dentro de aplicativos específicos, que podem ser acessados sem a necessidade de ter um pacote de dados ativo, WhatsApp sendo o líder entre eles. Qualquer link que leve para outro lugar não funciona. É a informação que está ali que conta, mas não só ela. Conta também quem mandou o conteúdo ou em que grupo ele foi circulado. Portanto, precisamos de qualidade de informação sim, mas também entender como é que essa informação chega (ou não) até as pessoas.
Avançando na oferta de informação de qualidade e na compreensão dos hábitos de consumo, estaremos certamente mais perto de resolver o problema. Há, no entanto, um elemento essencial que perpassa essas duas dimensões: o papel dos intermediários, especialmente das plataformas digitais. Para fazer uma metáfora um tanto simplificadora, mas bem ilustrativa, imaginemos que temos um supermercado de informações no espaço digital. Os produtos são as informações e os consumidores circulam ali de acordo com seus conhecimentos, hábitos, culturas e gostos servindo-se das prateleiras de diferentes formas. Pois bem, as plataformas são as donas do supermercado. Elas não produzem nada do que está ali, mas escolhem como as prateleiras estarão dispostas, que produto vai onde, o que fica mais na altura do olhar e o que estará naquele cantinho quase inalcançável para a maioria das pessoas. Só que há uma diferença essencial: as plataformas digitais são capazes de produzir um supermercado para cada pessoa, uma organização personalizada de produtos para cada cidadão. Pois bem, discutir e estabelecer regras para a atuação das plataformas digitais é um elemento essencial dessa equação. Portanto, é preciso criar um sistema estruturado e democrático de parâmetros e regras para a atuação dessas empresas. É o que se tem tentado fazer com todo o debate em torno do PL 2630, por exemplo, ainda que ele seja apenas um primeiro passo desse longo caminho.
Estamos reconstruindo nosso país e a comunicação precisa ser parte central desse processo. O combate à desinformação é necessário e urgente, mas é preciso entendê-lo como parte de um desafio maior. Garantir informação de qualidade, compreender e atuar sobre hábitos de consumo de informação e regular o papel das plataformas digitais são elementos centrais e indissociáveis do novo momento comunicacional que vivemos. Entender o novo momento político que vivemos passa necessariamente por compreender esse novo sistema de informação que vivemos. Essa é a hora de avançar, de produzir dados que nos ajudem a entender esse novo cenário, mas, sobretudo, que tornem possível atuar sobre ele no sentido de produzir um ecossistema comunicacional mais democrático. Um governo precisa disso, uma sociedade precisa disso, mas, sobretudo, é a democracia que depende disso para se fortalecer.
Nina Santos é doutora em comunicação pela Université Panthéon-Assas, pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital e Coordenadora do Desinformante e diretora do Aláfia Lab.
A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.