Ser botafoguense: um caso de mística e eterna injustiça

Ensaio

Ser botafoguense: um caso de mística e eterna injustiça
Foto: Ricardo Moraes/Reuters

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Fábio Dutra


06 de dezembro de 2023

Em dez anos ninguém vai lembrar quem levantou a taça do Campeonato Brasileiro de 2023. Será sempre o ano em que o Botafogo entregou o título de forma sobrenatural

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Até quem nem acompanha futebol deu pra opinar sobre a derrocada do Botafogo noCampeonato Brasileiro. E chove na cabeça do coitado do botafoguense toda a sorte de clichês que assolam a imagem do clube há tantos anos. O saudoso Paulo Mendes Campos estaria muito arrependido do dia em que achou por bem publicar que “tem coisas que só acontecem ao Botafogo”. A frase é memorável, mas não é bem assim.

Tem coisas que só acontecem mesmo ao Botafogo, mas isso passa longe de fazer dobotafoguense uma Geni apedrejada ou de reconhecer nele a virtude da resiliência de um Jó bíblico. Há inclusive coisas incríveis que só acontecem ao Botafogo. Se a temporada é de lugares-comuns, que dizer de um clube que tem como maior ídolo um cidadão boêmio e de pernas tão tortas que os ortopedistas mal conseguem explicar como conseguiu jogar futebol em alto nível, mas que acabou por levar o esporte a outro patamar ao empilhar “joãos” no chão com seus dribles desconcertantes?

O Botafogo vive no terreno do impalpável, do imponderável, a mística é quase um dever-ser do botafoguense. O Luiz Antonio Simas, outro botafoguense ilustre, dia desses lembrou em alguma rede social que Gabriel García Márquez (que seria botafoguense se tivesse nascido no Brasil) refutava o rótulo de fantástico para seu realismo com o argumento de que aquelas coisas que narrava eram corriqueiras na América Latina. Simas falou disso para sustentar que não via com grande alarde as notícias de que o presidente eleito da Argentina, Javier Milei, se aconselha com seu cachorro morto por meio de sessões mediúnicas. É um raciocínio botafoguense. E eu subscrevo.

É que o botafoguense já viu de tudo. Foi ao céu com o time que dividiu o palco com o Santos de Pelé nos anos 1960 para sair no inferno dos anos 1970, sem estádio (vendido a preço de banana por um presidente brucutu que era irmão de Cecil Borer, o chefe da polícia política de Carlos Lacerda na Guanabara) e no começo de um deserto de conquistas. A torcida que tinha visto Nilton Santos, Didi, Quarentinha, Gérson, Jairzinho, Amarildo, Zagallo, Manga, Paulo César Caju, Heleno e, claro, Garrincha ganharem tudo passou a se acostumar em perder tudo, enquanto seus rivais viviam seus melhores momentos.

Em 1989 veio a quebra do jejum, com o Campeonato Carioca que consagrou Maurício, o atacante febril. E o jogo parecia que iria mudar nos anos 1990: o Botafogo arranjou um estádio para jogar em Niterói, recuperou a sede histórica que havia sido vendida durante os anos de chumbo e conseguiu bons patrocínios. O clube chegou, enfim, ao tão sonhado bicampeonato brasileiro em 1995, sob a liderança do cômico artilheiro Túlio e sua camisa 7, a mesma de Mané.

Eu sou um botafoguense dessa época. Estava na primeira série do colégio quando meu pai e meus tios me levaram a comemorar aquele título como se corriqueiro fosse. Eu ainda não era botafoguense, e achava que futebol era aquilo: todo ano a gente torce e todo ano a gente leva. Para cada um o mundo se apresenta de um jeito, mas para mim a realidade se impôs em 1999, quando um Botafogo estrelado conseguiu perder a final da Copa do Brasil, em um Maracanã lotado com 100 mil pessoas, para o Juventude, time gaúcho de menor expressão. Tem coisas que só acontecem ao Botafogo.

Essa euforia é que era estranha. Os resultados que assustaram até os mais céticos comentaristasesportivos, as seis ou sete viradas ou empates no segundo tempo, muitas depois dos quarenta minutos, todas partidas que o Botafogo dominava, essas a gente enfrentou com familiaridade

Por essas e por outras é que só quem não é botafoguense se surpreendeu com a tragédia grega que acabou por se tornar a trajetória do Botafogo no campeonato brasileiro de 2023. Aquele ataque fulminante com Victor Sá numa ponta, Júnior Santos na outra, Tiquinho Soares na referência e Eduardo como elemento surpresa é que era inverossímil. Ao botafoguense, sempre saudosista e afeito a citar nomes e fatos históricos, parecia que encarnavam nossos heróis invencíveis de outras épocas. Mas é claro que esse doce haveria de desandar.

Mais uma vez a sina: quais as chances de um dos maiores jogadores em atividade exigir sertreinado pelo técnico do Botafogo? Pois Cristiano Ronaldo queria Luís Castro. Português por português, tinha o Abel Ferreira, multicampeão pelo Palmeiras, e tinha o pra lá de experiente José Mourinho. Mas CR7 queria era o Luís Castro do Botafogo como mister e fez o telefonema. O homem foi embora para as arábias se lavar em petrodólares, e o time ficou à deriva.

O que querem saber sempre é: mas como é que se sente um botafoguense depois de tudoisso? E mais: como é que se sentiu durante? Difícil explicar. Viralizou um vídeo do Stepan Nercessian, quando o time ainda era líder, em que ele dizia que não estava nada eufórico, estava era desconfiado pois, por sua experiência, só comemora vitória em qualquer hipótese depois de pelo menos 15 minutos que o jogo já acabou. É mais que desconfiança. O botafoguense acha que pode ser punido pelos deuses do futebol se externar qualquer otimismo, se pune antecipadamente porque, se sair da linha, vai ter a certeza de que a derrota aconteceu por sua culpa. É a mística.

A verdade é que a euforia pegou sim. Uma sensação de que o jogo virou e de que, dali para afrente, iria ser diferente. Se tem coisa que só acontece ao Botafogo, agora aconteceu de um bilionário americano, esse John Textor, americano dos Estados Unidos mesmo, lá onde ninguém joga bola, rico desses que podiam estar tomando caipirinhas pra sempre sem trabalhar, pois calhou de esse cidadão decidir fazer o Botafogo se tornar o Real Madrid das Américas.

Essa euforia é que era estranha. Os resultados que assustaram até os mais céticoscomentaristas esportivos, as seis ou sete viradas ou empates no segundo tempo, muitas depois dos quarenta minutos, todas partidas que o Botafogo dominava, essas a gente enfrentou com familiaridade.

Derrotas ou empates em casa para times que nada disputavam ou que lutavam contra o rebaixamento,idem. Isso o botafoguense, acostumado ao caos, sabe enfrentar. Sofre que chega a doer a espinha, mas o lugar é conhecido. Perder esse campeonato ganho só dói tanto porque dá saudade daquele oba-oba do primeiro turno, a verdade é essa.

No fim, o Botafogo e sua mística são tão grandes que em dez anos ninguém vai lembrarquem foi o abonado esquadrão que levantou a taça: 2023 será sempre o ano em que o Botafogo entregou de bandeja o título de forma sobrenatural, improvável, à sua maneira – é porque tem coisa que só acontece ao Botafogo.

Voltando àquele mesmo texto do Paulo Mendes Campos, a certa altura ele acerta umamáxima bem melhor para explicar este nosso ano de 2023: “O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu e rasgar as vestes com as unhas do remorso”. Se o sertanejo é, antes de tudo, um forte, o botafoguense é, antes de tudo, um injustiçado.


Fábio Dutra é botafoguense avesso à injustiça e advogado criminalista. É sócio fundadordo Fábio Dutra Advogados.

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