A mudança climática não é mais uma mera conjectura, e sim uma realidade vivenciada pela população em todo o mundo. Somente em 2023, no Brasil, tivemos mais de 1.000 desastres naturais, incluindo inundações e ondas de calor, um número recorde. Estamos mais atentos aos alertas emitidos pelos órgãos públicos. Adaptamos nossas rotinas diárias conforme as previsões meteorológicas. Imagens de veículos submersos, árvores caídas e pessoas passando mal dentro de ônibus lotados e sem ar-condicionado se tornaram comuns, refletindo o impacto direto das mudanças climáticas em nosso cotidiano.
À medida que nos aproximamos das eleições municipais, é crucial entender o papel da mobilidade urbana nesse contexto. Como garantir que os sistemas de transporte contribuam para tornar nossas cidades resilientes diante das pressões climáticas? Nos próximos seis meses, os candidatos ao Legislativo e Executivo municipais apresentarão suas propostas, e a mobilidade ocupará um dos espaços centrais dos debates, como tem sido nos últimos anos. Porém, é chegada a hora de ir além das meras discussões retóricas e avançar com soluções concretas para melhorar a vida da população. Proponho algumas prioridades para nossa reflexão, destacando a mobilidade como um direito fundamental e uma estratégia crucial para melhorar a qualidade de vida em meio à emergência climática.
A mobilidade hoje se caracteriza por deslocamentos diários extensos, dificultando o acesso a empregos, serviços e lazer. A infraestrutura de transporte é deficiente e as tarifas, muito altas para a população, não garantem a qualidade do serviço. A mobilidade urbana apresenta desafios ainda maiores para grupos vulneráveis em termos de gênero, idade, raça e renda. Além disso, o transporte é uma das principais fontes de emissões de poluentes nas cidades, contribuindo para a poluição do ar e afetando a saúde pública.
Entretanto, a mobilidade é uma atividade essencial, e não por acaso é um direito garantido pela Constituição Federal. A luta da sociedade civil por estabelecer um SUM (Sistema Único de Mobilidade) aponta para a necessidade de uma nova estrutura de governança e gestão do transporte, baseada em princípios de equidade. Para garantir esse direito fundamental, os municípios deverão buscar uma atuação coordenada e multissetorial, considerando a relação dos municípios com a escala metropolitana. É necessário estabelecer instâncias executivas permanentes que integrem a mobilidade com ações de enfrentamento às mudanças climáticas, reduzindo as emissões e implementando medidas de adaptação nas áreas urbanas. Viver na cidade não pode ser uma questão de salve-se quem puder. O poder público tem a responsabilidade de identificar as vulnerabilidades locais, de seus sistemas e de sua população, e elaborar estratégias para proteger os grupos em risco.
Apesar de sua crescente precariedade, o transporte coletivo é indispensável para o funcionamento das cidades. A resiliência urbana requer sistemas que operem eficientemente
Há três décadas, o transporte público enfrenta uma redução no número de passageiros, enquanto o uso de carros, motocicletas e aplicativos continua aumentando. Apesar de sua crescente precariedade, o transporte coletivo é indispensável para o funcionamento das cidades. A resiliência urbana requer sistemas que operem eficientemente não apenas em condições normais, mas também em situações extremas, como eventos climáticos ou sanitários. É urgente promover o renascimento do transporte público em nossas cidades, eliminando estigmas e garantindo que seja acessível, seguro, confiável, de qualidade e sustentável.
Em todo o mundo, temos testemunhado o avanço das cidades na transição para ônibus elétricos, uma tecnologia que se destaca hoje em termos de redução da poluição e promoção da saúde pública. O Brasil não é exceção. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) acaba de identificar uma demanda declarada de quase 3.000 ônibus solicitados por 51 cidades brasileiras, superando os R$ 3 bilhões inicialmente previstos. Temos uma oportunidade com a retomada do governo federal na agenda para impulsionarmos a mobilidade urbana sustentável. Alinhando esforços, prefeitos e prefeitas podem cumprir os compromissos climáticos e de qualidade do ar com ações concretas, com a transição para veículos limpos como uma meta.
Além disso, é crucial discutirmos o impacto do custo do transporte na vida da população. No último ano, observamos diversas cidades brasileiras implementando a tarifa zero. Atualmente, já são 106 municípios que aderiram a essa iniciativa, beneficiando mais de 5 milhões de habitantes. Enquanto os especialistas debatem sobre a viabilidade da manutenção do serviço diante de um possível aumento significativo na demanda, vejo essa como uma oportunidade valiosa para entendermos a demanda reprimida de transporte público por parte daqueles que não têm acesso ao sistema devido a restrições financeiras.
Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2018 revelaram que pessoas pretas e pardas tendem a arcar com um custo mais elevado no transporte público em comparação com a população autodeclarada branca. O impacto negativo da tarifa se reflete em viagens que não se limitam ao trajeto casa-trabalho, mas principalmente outros deslocamentos – de cuidados, segurança alimentar e lazer, que são rapidamente cortados quando não se tem dinheiro para pagar a passagem, deixando uma parcela significativa da população ainda mais vulnerável.
A emergência climática nos coloca diante de um momento crucial de inflexão, no qual é necessário redefinir aspectos fundamentais da nossa vida em sociedade, incluindo como habitamos as cidades, distribuímos oportunidades e nos deslocamos pelos territórios. Sem transporte público coletivo, não temos cidade. Vereadores e vereadoras, prefeitos e prefeitas têm a responsabilidade crucial de desenvolver e aprimorar marcos regulatórios e políticas que reconheçam a mobilidade urbana como uma ferramenta essencial para promover a justiça climática, garantindo o acesso equitativo à cidade, a redução das desigualdades sociais históricas e a mitigação do impacto ambiental.
Clarisse Cunha Linke é mestre em Políticas Sociais, ONGs e Desenvolvimento pela London School of Economics and Political Science (Reino Unido) e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal Fluminense. Desde 2012, é responsável pela direção executiva do escritório brasileiro do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento.